1.2.08

Tomas o comprimido vermelho e ficas no País das Maravilhas

O amor à primeira vista não é mais que uma fantasia a que homens e mulheres se agarram ao fim de décadas de casamento, a recordação já desfocada do/a amigo/a da meninez, da paixão de Verão, do/a colega de faculdade, que surge como um consolo em meio ao gris da prática conjugal diária. O Obrigadosápinto não acredita em grandes começos.

Um exemplo: quando, ainda um jovem, viu o Matrix no cinema, o Obrigadosápinto pensou que estava a testemunhar em primeira mão um dos maiores filmes jamais feitos, que juntava de forma culta, mas não pedante, as tendências nerds do Obrigadosápinto e a sua fascinação por filmes de porrada. Era, ao mesmo tempo, um grande filme e um ganda filme. Ao ver aquela mistura de Baudrillard e Capitão Marvel, de angústia do capitalismo tardio e kung fu, o Obrigadosápinto deu por bem empregues aquelas tardes passadas a ler gibis da Editora Abril. Foi um grande começo.

O Reloaded e o Revolutions, contudo, meteram as coisas no devido lugar: os Wachowskis eram sobretudo tipos com problemas de sociabilidade que, quando a ideia boa que tiveram se esgotou, foram aumentando as explosões e as cenas de pancadaria à medida que as especulações pseudofilosóficas das personagens acerca da natureza da realidade se iam tornando mais caricatas e dolorosas de ouvir. A rave gigantesca em Zion, uma discoteca de escala citadina onde toda a gente dança num uníssono suado, só podia ter saído da cabeça de dois homens que, na adolescência, se entregaram de forma consistente, metódica e dedicada à quiromania.

No futebol, é a mesma coisa (no que diz respeito aos começos, não à quiromania). O que são, afinal, o Padinha e o Tó Portela, para usar dois românticos exemplos bem próximos, senão bons começos que nunca tiveram continuidade? Parece, ao Obrigadosápinto, que pode haver nisto uma lição de vida. Às vezes, talvez seja melhor começar devagar, ir mostrando um pouco e depois tirar finalmente as vestes, mas com decoro. É possível que o mostrar demasiado demasiado depressa extinga rapidamente a chama. Há aqui, de facto, uma moral.

Para o Obrigadosápinto, o Di María é, quer no SLB, quer em qualquer outra equipa cujos jogos sejam regularmente transmitidos pela Sport TV, o jogador com mais potencial, o mais excitante, o mais impossível de classificar, aquele no qual a bola mais parece, não uma extensão do próprio corpo, não um objecto de trabalho, mas sim um brinquedo. O Di María não é um Quaresma, que, ao contrário do que parece, é um produto de mecanização, alguém que treinou milhares de vezes a trivela e a finta com o calcanhar para o interior do campo, quando parece que vai para a linha final; só após um cuidado programa de dopagem poderia ser uma maravilha física como o Cristiano Ronaldo, e nunca terá a sua altura ou ossatura; não é um decalque como o Messi, alguém cujo futuro já existiu no passado; não é um gingão já espartilhado num sistema e numa táctica europeus como o Robinho.

O Di María é diferente de todos eles, porque, em qualquer jogo, parece que acabou de sair do seu primeiro treino organizado nos iniciados, no qual passou metade do tempo a recrear-se com a bola, sem ouvir o que o treinador dizia; é diferente porque nunca se faz a mínima ideia (ele próprio certamente não fará) do que sairá daqueles pés, quando eles pegam na bola. Em 75% dos casos, o Di María perde-a de maneira tão estupidamente infantil que dá vontade de espancá-lo num beco escuro (como, na escola, o Obrigadosápinto gostava de ter feito, mas nunca fez, àqueles miúdos que não passavam a bola a ninguém), mas há tanta recompensa naqueles 25%, tanto potencial, que a seguir dá vontade de cobri-lo de beijos. Gordos. O que ele tem não se treina – aliás, é bem possível que o treino dê cabo daquilo que ele tem. Aquilo só se brinca.

O futebol dele é excitante também por ser perigoso, sobremaneira por isso, se calhar. É uma certeza que ele vai perder uma ou outra bola à entrada da área que até pode (vai) dar golo à equipa adversária, e não faltará quem apareça então a falar da imaturidade do Di María, do quando é que ele se tornará finalmente um jogador de equipa. Por cada vez que isso suceda, porém, há sempre a possibilidade, por remota que seja, de que aconteça algo como o que aconteceu no sábado.

O miúdo é imprevisível, e o seu ar desconjuntado, aquela maneira de correr eléctrica, os pés para o lado, o ele não saber jogar em affetuoso (vê-se que quer ir para a baliza assim que recebe a bola, nem que seja à saída da sua própria grande área), só aumentam o encantamento de o ver com a bola nos pés. Todos os defesas do mundo hão-de saber, um dia, que o Di María pára apenas por milissegundos antes de, ao melhor estilo matrixiano, acelerar para a baliza, porque ele só sabe jogar para a frente. Ao seu lado, atrás de si, biting his dust, como agentes Smith, todos os adversários e companheiros parecem estar parados. O Di María pode ser o Neo não só do SLB, mas de todo o futebol, o escolhido para derrubar um desporto-rei (há muito que o Obrigadosápinto queria escrever “desporto-rei”) cada vez mais sistematizado, mais robotizado e mais artificialmente glossy. (Durante a sua passagem por Portugal, talvez o Di María até consiga derrubar o totalitarismo socrático, ou inspirar uma geração de portugueses, futebolistas e não só, a fazê-lo.)

É sempre esta, no fundo, a tensão que existe no futebol, que aqui se realiza, num daqueles momentos de clareza, como maravilhosa metáfora da existência: a tensão entre o instinto e a razão, entre o improvisado e o mil vezes treinado, entre a individualidade e o colectivo, entre o liberalismo e o comunismo. Se o Maradona tivesse sido treinado pelo Mourinho, tinha gramado muito banco e muita conferência de imprensa do treinador a acusá-lo de ser um mau profissional por passar os treinos a dar toques malabares na bola (em vez de treinar a 80% da intensidade de um jogo, é claro) e por não correr atrás dos adversários depois de a perder; pelo Obrigadosápinto, o Di María bem pode não fazer a compensação às subidas do lateral-esquerdo umas quantas vezes por jogo. Quanto pode o indivíduo ousar sem comprometer a ordem social à sua volta? Questões interessantes, o Di María põe-nos.

A expectativa que houve, ao princípio, em redor do Di María não se deveu necessariamente ao facto de os benfiquistas saberem que era ele quem vinha para o SLB; foi mais por vir para cá um jogador canhoto argentino de 19 anos. Esta premissa já arquetípica tem tantas conotações que nem vale a pena aprofundá-la. Contudo, passada aquela expectativa do novo, depressa os benfiquistas se começaram a irritar com o individualismo, as perdas de bola, as fintas sem sentido, a irregularidade. Ao vivo, na Luz, aquele entusiasmo inaugural (de quem estica os lábios e aspira ar pela boca) pelo Di María começou a dar lugar a um burburinho de desaprovação (de quem sussurra para o espectador do lado) sempre que ele perdia uma bola ou falhava um passe. De maneira que, para o Di María, não foi chegar e conquistar, como aconteceu ao Rodríguez, que tem tanto de criativo como de objectivo. O começo do Di María no SLB foi, desta forma, e tomando em consideração tudo o que o rodeou desde que chegou, um mau começo, mas com aquele ocasional levantar do véu que vale o preço de 25 bilhetes para a bancada central.

E ainda bem que o Di María começou mal no SLB; não só porque pode (vai) acabar bem, mas também porque, enquanto isso não acontece, vai fazendo o Obrigadosápinto devanear com o que poderá ser. O futebol, afinal, ainda é sobretudo projecção, sobretudo promessa, é ver seis jogos num só fim-de-semana e arriscar a felicidade conjugal na expectativa de ver um golo ou uma finta que nunca mais se esquecerá. Para um benfiquista, nestes últimos anos, ver futebol é, mais do que expectativa, pura esperança, e, para quem ainda gosta do futebol primordial, do prazer de ver alguém tentar que os seus pés façam alguma coisa de insólito com a bola, por estes dias felizmente há o Di María e a Taça das Nações Africanas.

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