17.2.08

A verdade é que ver um jogo inteiro do SLB é mais chato do que uma retrospectiva do Manoel de Oliveira na Cinemateca

Não é fácil vir aqui ao Estádio da Luz e colocar o Benfica a fazer antijogo e com medo do Feirense. Luís Miguel, treinador do Feirense, 19.01.2008

Na primeira parte, jogámos como em casa. Thomas von Heesen, treinador do Nuremberga, 14.02.2008

Uma das locuções, não!, uma das instituições do futebol que o Obrigadosápinto mais aprecia é o “olhólhólhólhólhólhó”. Toda a gente a conhece, aquela consoante palatal lateral repetida vezes sem conta (no mínimo seis), quando uma jogada perigosa ou mesmo de potencial desastre para uma equipa se desenrola pouco a pouco perante os olhos dos seus adeptos. Para prover esta afirmação com exemplos práticos, aqui ficam dois, adaptados à realidade do SLB e perfeitamente aleatórios: “Olhólhólhólhólhólhó, que o Luisão passou a bola ao Luís Filipe” e “Olhólhólhólhólhólhó, que o extremo-esquerdo dos gajos está a ir para cima do Luís Filipe”.

O olhólhólhólhólhólhó, pelo menos no espírito do Obrigadosápinto, é, pelo seu carácter institucional, algo de precioso, faz, tal como uma entrevista-relâmpago do Jorge Jesus, parte da cultura seminal do futebol e, como todas as coisas preciosas e seminais, não deve ser desperdiçado, não é para ser derramado on the dusty ground. Hoje em dia, contudo, assiste-se a uma verdadeira praga de olhólhólhólhólhólhós no Estádio da Luz, olhólhólhólhólhólhós esses que, nos últimos 15 minutos de jogo, são exclusivamente estribilhados por adeptos do SLB.

Como é que isto aconteceu? Desde quando é que o SLB tem de acabar os jogos aflitinho a defender o 1-0? Desde quando é que o SLB tem de acabar os jogos aflitinho a defender o 1-0 contra o Feirense e o Nuremberga? E o problema maior disto tudo é que se perdeu completamente o carácter, a exclusividade do olhólhólhólhólhólhó: ele costumava estar reservado para jogos com grandes equipas com grandes jogadores (o Kostadinov continua a ser provavelmente o maior olhólhólhólhólhólhó que o Obrigadosápinto já viu na Luz: bastava ele relancear a bola ou o Fernando Mendes para um murmurinho temeroso nascer nas bancadas), mas agora quaisquer badamecos chegam à Luz e induzem-no. Pior, depois de verem o SLB a jogar na televisão, e num sinal de enorme falta de respeito, começam mesmo a pensar em induzir os olhólhólhólhólhólhós vários dias antes do jogo, apesar de, por uma questão de pundonor, dizerem o contrário nas conferências de imprensa. Como as coisas mudaram: neste momento, já todos sabem que o SLB vai nu.

Muito, claro, é culpa própria: seja na Taça de Portugal com o 12.º classificado da II Liga, seja na Taça UEFA com o antepenúltimo da Bundesliga, o SLB faz com que qualquer equipazeca (com ofensa) entre no seu estádio e, qual convidado abusador, de imediato comece a mexer em tudo como se fosse seu: desarrumam-se livros, vai-se ao frigorífico sem pedir, fazem-se perguntas sobre as fotografias de família, não se descalçam os sapatos enlameados. E o que é que a equipa do SLB faz? Rigorosamente nada: porta-se como uma excelente anfitriã, sempre com um sorriso, recusa-se a impor as regras da sua casa, e no fim os treinadores das outras equipas ainda dizem mal da comida. É a indignidade. É o mesmo que o Pedro Paixão sair de casa do Hemingway a dizer que a escrita dele é estereotipada.

Em tempos, todo o jogo na Luz começava com 15 minutos à SLB™, mas a equipa actual já se mostrou incapaz até de pôr o Celtic em sentido; o que interessa é que os adversários estejam confortáveis. Como a totalidade dos benfiquistas, contudo, o Obrigadosápinto está farto de que a equipa do SLB se comporte como uma sr.ª Dalloway cuja sanidade depende de os convidados se sentirem bem em sua casa, está farto de que o último quarto de hora de jogos com Feirenses e Nurembergas consista em sucessivos olhólhólhólhólhólhós. Há que acabar com este complexo dos 15 minutos à Feirense™.

Sendo progressista, o Obrigadosápinto confessa-se, não obstante, conservador em alguns aspectos, por isso lembra-se do velho Estádio da Luz com algum saudosismo. Sobretudo, e de olhos embaciados, lembra-se das equipas do SLB que lá jogavam. Até porque ainda não era nascido, o Obrigadosápinto não está a falar da década de 1960, e nem é preciso: basta lembrar o princípio da de 1990, quando o SLB ainda era a segunda equipa com maior número de pontos na história da Taça dos Campeões Europeus e o Michael Laudrup veio jogar à Luz pelo Barcelona e disse que o SLB era a melhor equipa que alguma vez tinha visto. As equipas adversárias respeitavam a “Catedral”, mas o SLB deixou de exigir esse respeito. Já nem o Luís Miguel o oferece agora.

Costumava ser, até, que os jogos da UEFA fossem, para os benfiquistas, um refrigério de desilusões internas. Estimulado pelo seu sangue azul e aproveitando uma recente efeméride relativa à realeza, ao Obrigadosápinto até apetece dizer que, para o SLB, sair de Portugal era a oportunidade de, pelo menos por momentos, ir para longe da piolheira. Na verdade, tirando alguns jogos com o Liverpool na década de 1980, o SLB fazia sempre boa figura na Europa, estava entre pares. Era verdadeiramente parte da aristocracia europeia.

No Estádio da Luz, então, era tão bom como as grandes equipas estrangeiras que lá iam jogar: Arsenal, Juventus, Parma, Barcelona, ninguém vinha cá e parecia ser de outra galáctica.

Até que um dia, num previsível repente, tudo mudou, e o Obrigadosápinto estava lá, inclusive, quando a viragem se deu. Foi em 1999/2000, numa noite de chuva: num jogo com o Dínamo de Bucareste, o SLB perdia por 1-0, e o jogador que saiu do banco para inculcar o medo de Deus no coração dos romenos foi o Tote. Como é que, a partir daqui, o SLB podia aspirar à respeitabilidade europeia? (Dois meses depois, como que a confirmar essa ideia, o Obrigadosápinto ouviu dizer que aconteceu qualquer coisa em Vigo.)

A sofisticação aristocrática que o SLB tinha na Europa já não passa, assim, de uma memória, mas condicionou de tal maneira o jovem Obrigadosápinto que o adulto Obrigadosápinto ainda espera que ela surja a qualquer momento. Contudo, os valores são agora outros, o mundo é diferente, e as certezas estruturalistas já de nada valem a um benfiquista como o Obrigadosápinto. Chegou talvez a altura, pois, de ele abraçar o pós-modernismo.

Sem recorrer a metanarrativas, há que aceitar as coisas como elas são e ver que, presentemente, o SLB da UEFA joga mais ou menos o que joga o de Portugal: pouco, sem qualquer estro e, ao que parece a um observador exterior como o Obrigadosápinto, com muito pouca vontade. Mais que perdidos, os jogadores parecem francamente aborrecidos em campo, e, por muitas voltas que se dê, não se podem fazer somente dois remates à baliza num jogo em casa com o Nuremberga, uma equipa cujo Angst actual é de tal ordem que a sua esperança de salvação da época foi depositada na contratação de um ponta-de-lança com 34 anos, os joelhos de um membro da gerúsia e a mobilidade de uma arca de mogno. A marcá-lo, o Luisão até parecia o Mozer, e ao menos esse flashback foi consolador para o Obrigadosápinto.

(SLB, 1 – Nuremberga, 0)