29.10.07

De rerum natura

Se o jogo com o Celtic tinha acabado de forma a forçar o Obrigadosápinto, ateu confesso, a usar terminologia que quase o fez passar por beato, o com o Marítimo, em vez de contrariar esse pendor e fazer o Obrigadosápinto voltar a ver o futebol de maneira naturalista, teve e-x-a-c-t-a-m-e-n-t-e o mesmo efeito. É que a vitória do SLB não se pode explicar, efectivamente, estando o sujeito sujeito ao domínio das leis naturais. No “National Geographic”, afinal, numa caçada na savana, nunca o antílope coxo consegue fugir à chita, mas, hoje, o antílope coxo não só fugiu, como ganhou o jogo. Como é que se diz no jornalismo desportivo? Ah sim, a vitória caiu do céu.

A responsabilidade maior, claro, cabe ao Obrigadosápinto concentrado em 1,69 m de defesa-esquerdo que se chama Léo (porque ele acredita sempre que, enquanto continuar a correr, a esforçar-se, a chocar contra a parede da fadiga e da lógica, coisas boas lhe vão acontecer), mas não foi isso que chamou a atenção do Obrigadosápinto, sempre atento ao detalhe que escapa às câmaras de televisão, no jogo do ontem. (Na verdade, no instante do golo, lágrimas de alívio correram de tal forma pelo espírito do Obrigadosápinto que a própria recordação do instante lhe parece embaciada.)

Tendo passado por instantes místicos em anos mais jovens (apesar do seu feitio conflituoso, o Obrigadosápinto fez grandes leituras de Mestre Eckhart), o Obrigadosápinto acredita na ligação invisível entre acontecimentos e pessoas, sabe que nada acontece no vácuo. Assim, no jogo com o Celtic, o momento mais belo do jogo tinha sido uma cueca do Rui Costa a um tipo chamado Caldwell na esquerda do ataque, que, previsivelmente, e conhecendo a biografia do Rui Costa, acabou num remate que quase saiu pela linha lateral.

O belo criado jogo após jogo pelo Rui Costa é, de facto, extraordinário, até na sua imperfeição, e é porventura por isso que ele é, hoje em dia, um caso único de devoção por parte dos adeptos de um clube. O Rui Costa é mais consensual entre os adeptos do SLB do que Jesus entre os cristãos, não admite cismas. Quando ele cria algo que não está ao alcance dos demais, algo que até os confunde e apequena, lembra-lhes no instante seguinte que é igual a eles, humano como eles. No fundo, nessa aliança ele assemelha-se a Ele, só que nunca, mas nunca, é abandonado.

No jogo com o Marítimo, o Obrigadosápinto teve a sorte de ver a linha incorpórea que une todos os jogos do SLB, ao mesmo tempo que se apercebeu, pela primeira vez em mais de duas dezenas de anos a ver futebol, de que há quem esteja numa plana mais alta (mesmo que não em termos de posição no estádio), alguém que, desse lugar, vê algo que os outros nunca tinham visto, algo que nem sequer conseguem ver. Sentado na bancada, o Obrigadosápinto sempre acreditou (e por isso se irava e assobiava) que via mais do que se passava em campo do que os jogadores viam. Cada vez que um jogador tinha um companheiro a correr sozinho pela esquerda e passava para o extremo-direito, cada vez que se agarrava à bola quando tinha um companheiro esbracejante isolado na área, o Obrigadosápinto irritava-se, mas percebia que ele, na bancada, tinha uma visão dos 7000 m² do campo que esse jogador não tinha.

Hoje, o Rui Costa ensinou ao Obrigadosápinto o significado da humildade (os paralelismos messiânicos sucedem-se, mas a culpa não é do Obrigadosápinto): por duas vezes fez passes para jogadores isolados, no caso o Léo e o Rodríguez, que o Obrigadosápinto, sentado bem acima no anfiteatro, só viu quando a bola chegou aos pés deles.

O belo criado por Rui Costa é, pois, o fio condutor que une todos os jogos do SLB, e é a sua criação que dá sentido teleológico aos jogos do SLB. Golos, vitórias, são importantes, claro, mas reduzir a experiência de ser tocado pelo sortilégio futebolístico-cinético do Rui Costa a um fim utilitarista está perto da heresia. Ao experimentá-lo, o Obrigadosápinto sente, como suas, as ideias de Walter Pater.

Nunca haverá outro jogador como ele, tal como não haverá outro Bergkamp ou outro Laudrup (e como, daqui por dez anos, se dirá que não haverá outro Hleb), jogadores que não se limitam à banalidade de sair para qualquer lado com a bola jogável, antes se preocupam, isso sim, com a jogabilidade da própria bola. O Obrigadosápinto sempre se perguntou se os companheiros de equipa destes jogadores sentem o privilégio que é fazer exercício com bola junto a eles.

O Léo deve senti-lo, mas não é por ter contribuído de forma pontual para uma vitória do SLB que merecerá, um dia, um ensaio no Obrigadosápinto; quando isso acontecer (e vai), será antes porque o Léo é Obrigadosápinto. O Rui Costa não o é, em nada, mas o Obrigadosápinto está ciente do seu próprio lugar no cosmos.

Para um confesso ateu, é de facto um facto que o Obrigadosápinto força demasiado a ligação ao transcendente, algo que ele imputa à sua formação nas humanidades. Na verdade, porém, o que o Obrigadosápinto mais desejaria era conseguir explicar a circunvolução do 2-0 com a Naval recorrendo à física.


(SLB, 2 – Marítimo, 1)

25.10.07

Bairro semiproblemático

O Obrigadosápinto é um projecto ideado e reflectido há algum tempo, mas o início da época apanhou-o de férias e, desde então, ele tem vivido com uma sensação de persistente e profundo desânimo, perante o que o SLB tem feito até agora. Depois de um ano do pesadelo santiano de Fernando, mais dinâmico como militante do movimento antiaborto do que alguma vez o foi no banco do SLB (o pescoço espasmódico, por involuntário, não pode contar como actividade psicomotora consciente), a euforia preambular da era Camacho tinha dado lugar, na mente combativa do Obrigadosápinto, a uma letargia sem fim, a um receio de falhar, a uma incapacidade de afirmação.

Nisto, o Obrigadosápinto imitava, no fundo, a atitude em campo da equipa do SLB, que, por sua vez, se assemelhava ao padrão comportamental de um desempregado de média/longa duração. Tal como este sente uma compulsão resignada que o obriga a ver dia após dia o “Você na TV” e o “Tardes da Júlia”, muitas vezes em estado semiembriagado, também o SLB passava pelos seus jogos com uma quietude deprimente e uma inacção pesada e invencível, sobretudo nas primeiras partes.

Hoje, porém, ao escrever este texto, o Obrigadosápinto fá-lo com o coração cheio de arrebatado fervor clubista, bem ao seu estilo, portanto. Afinal, foi este o dia de uma segunda parte (a primeira foi como que um desânimo pós-masturbatório de 45 minutos) frente ao Celtic que lembrou, ao Obrigadosápinto, presente no estádio após longa abstinência, a garra das noites europeias da sua infância/primeira adolescência, nos anos 1980/90. Na segunda parte, o SLB assegurou, de facto, o pleno emprego. (A verve do Obrigadosápinto faz com que ele não tenha sequer medo de esgotar metáforas e de as usar até uma dolorosa exaustão.)

Foi como se o Camacho tivesse redescoberto, ao intervalo, os “huevos” que o tornaram, há quatro anos, tão querido do Obrigadosápinto e de todos os adeptos do SLB; como se tivesse abandonado a agudeza táctica (que não é ele) que todos os treinadores julgam ter de demonstrar quando jogam no ambiente mais sofisticado que é uma competição europeia (oh, se haveria aqui material suficiente para uma análise marxista... e para outra freudiana) e decidido ir para cima deles, como se a voz do Ângelo lhe segredasse ao ouvido: “Vamos para cima deles!”; como se tivesse, em suma, decidido aceitar o seu Obrigadosápinto interior.

Aquela segunda parte foi entusiasmante, a lembrar cavalgadas dos ’80/’90, quando ninguém ganhava na Luz em jogos da UEFA; quando a tribo do Terceiro Anel empurrava aquela equipa para a frente; quando o Veloso era ultrapassado vezes sem conta por um extremo jugoslavo/russo/checoslovaco qualquer, mas agarrava-o sempre, pela camisa, pelos calções, pelas meias, até se voltar a colocar à frente dele, na defesa da baliza do SLB; quando se empatavam jogos com o Arsenal mesmo no último minuto, porque o estádio a isso obrigava.

Hoje, foi assim, apesar de o golo não ter sido no último minuto (e de o Obrigadosápinto ter lugar na equipa do Celtic). Seja como for, o SLB investiu pela segunda parte como o Rodríguez, de cabeça baixa como um touro. Devia ser assim mais vezes.

Ainda por cima, e apesar da sua garra, o Obrigadosápinto é, à boa maneira de quem lhe deu nome, naturalmente emotivo, e o facto de ter sido o Cardozo a decidir o jogo tocou-o.

Foi, num só acto, o triunfo do desafortunado; a recompensa celeste para quem acredita na transcendência; o pobre a ganhar a lotaria; o direito (porque a vitória foi mera questão de justiça) feito carne na figura de um jogador (o Obrigadosápinto e a estilística, sempre de mão dada). O golo depois de duas bolas na armação da baliza e de um pontapé na relva-ar, o golo contra todos os assobiadores e contra todos os burburinhos que se ouviam quando a bola passava sequer perto dele, mal passada por um colega de equipa, e ele não a agarrava.

Na compaixão por Cardozo, porém, o Obrigadosápinto não esteve sozinho. Num país com o quarto maior santuário católico do mundo e em que a desgraça e a contrariedade nunca andam longe do discurso público, já Cardozo tinha sido aplaudido depois de mandar a bola ao poste. Era a segunda, o público comocionou-se – e o Obrigadosápinto também. As palmas movidas pela pena soam como as outras.

E, de facto, com tanta injustiça no mundo e num país onde um processo em tribunal se pode arrastar por décadas, Cardozo foi réu, advogado, júri, juiz e executor em 90 minutos: quem vê justiça instantânea, não pode senão comover-se. E o passe do Di María, flutuando como uma pluma que só quis cair no sítio exacto, acrescentou-lhe o adjectivo “divina”.

Entretanto, pode substituir-se “desempregado de média/longa duração”, até porque o Obrigadosápinto sente muitas vezes tendências esquerdistas, por “estudante do ensino superior”.

(SLB, 1 - Celtic, 0)