28.11.07

Orgulho homo

Num francamente já preocupante, de um certo ponto de vista, caso de amor másculo, o Obrigadosápinto volta a querer escrever sobre o Rui Costa. Desta vez, contudo, é para manifestar a sua perplexidade pelo facto de o Rui Costa ter marcado um golo de livre. Até na sua incapacidade de marcar livres de forma minimamente decente ele se distinguia da maior parte dos grandes números 10, pelo que o Obrigadosápinto espera que o Rui Costa não se esteja a tornar demasiado mainstream. Apreciador do desdém francês, afinal, o Obrigadosápinto equivale o que é de culto a arte.

27.11.07

Sending out an SMS

O Obrigadosápinto, a quilómetros de Coimbra, de uma televisão ou de um simples rádio, viu-se forçado a recorrer a um serviço de mensagens para poder acompanhar o Académica-Benfica.

90 minutos de jogo resumidos em 5-mensagens-5: uma do golo da Académica, três dos golos do Benfica e uma assinalando o resultado final. 5 mensagens frias e absolutamente factuais. Nem um único adjectivo, nem qualquer referência ao erro do Luís Filipe, ao pontapé de "seixo" de Rui Costa, ao calcanhar de Luisão, ao poste que Adu assistiu. Nada. Apenas "Golo do Benfica. 'Fulano' aos x minutos". Valeu apenas o facto anormal de as mensagens chegarem em português e não como usualmente, tipo "Gol Bfica Lsao lol".


Tratou-se de experiência que dificilmente o Obrigadosápinto irá repetir, a não ser que alguma operadora móvel reforce os seus serviços com mensagens que transmitam outros acontecimentos do jogo. Porque não "Saídas em falso de Quim", "Pés em riste de Binya" ou "Passes maravilhosos passe a redundância de Rui Costa"?
O Obrigadosápinto mostra-se disponível para subscrever todos os serviços que vão para além dos meros golos, com excepção do serviço "Passes falhados por Luís Filipe". É que o orçamento disponível que mal ultrapassa os 2500 euros/mês não o comportaria.

(Académica, 1 – SLB, 3)

12.11.07

Jorge Limão... Andy Garcia... Rui Águasss...

Não sem alguma tristeza e experimentando ele próprio a pungência da ingratidão, o Obrigadosápinto ouve alguns benfiquistas dizerem, volta e meia, que o Rui Costa “desaparece” dos jogos do SLB durante muito tempo. Felizmente, não são muitos, e o Obrigadosápinto, condescendente, reconhece ser assim mesmo a natureza e a memória do povo. Tal como o Salazar ganhou os Grandes Portugueses, ainda o Mourinho acabará por ganhar a eleição dos Grandes Modelos do Desportivismo Português em 2047, deixando o Sá Pinto e o Jorge Costa a alguma distância.

O interessante para o Obrigadosápinto, porém, é o que move as pessoas a fazerem essa crítica, que anda quase sempre à roda de dois pontos: por um lado, dizem que a acção em campo do Rui Costa é demasiado descontinuada, por outro que muitos dos seus passes se perdem nos pés dos adversários (ou para longe dos dos companheiros de equipa), o que emperra o jogo do SLB, já de si demasiado dependente dele.

Em relação ao primeiro, é muitas vezes atribuído à idade do Rui Costa, o que é uma completa sandice.* O Rui Costa é um corpo celeste muito brilhante, mas intermitente, desde que o Obrigadosápinto começou a vê-lo jogar nos seniores do SLB, vindo do Fafe. Desde o primeiro momento que o Obrigadosápinto percebeu que, ao vê-lo, estava perante uma experiência de intensidade, não de duração. E ainda bem, pensou na altura, como pensa agora, o Obrigadosápinto. Também devido ao seu posicionamento moral, aliás, o Obrigadosápinto não está interessado em questões de perpetuidade, até porque não consegue imaginar nada de mais entediante do que um estado inalterável: jamais o conseguirão interessar numa queda e enevoada eternidade a ouvir o trinar de uma harpa, nunca o verão com o doce sorriso que advém de um beatífico nirvana, e a repetitiva conversa com cada uma de 72 virgens fá-lo-ia suspirar pelo mundanismo com cheiro a conhaque e Gitanes de uma mulher de reputação duvidosa.

O absurdo de pedir ao Rui Costa que faça mais é o mesmo de chegar ao pé do Leonardo Da Vinci e dizer-lhe: “De facto, és um grande pintor, mas acho que pintas pouco. Tens o quê... 30 quadros?” A experiência intensa de ver um passe singular do Rui Costa, o que acontece duas, com sorte três vezes por jogo, tem um efeito que dura não só esse jogo todo, mas que permanece enquanto a memória tiver alcance. No seu carácter não duplicável estão guardadas a transitoriedade e a violência da epifania ou do satori, infinitamente mais elevados do que qualquer estado permanente.

Quando o desassossego humano dá lugar a uma estranha acalmia, esse instante instintivo de claridade é, sobretudo, consolo, um vislumbre de algo mais, mas, pela sua própria natureza breve, não nega a condição humana do sujeito. E o Rui Costa dá-lo a quem estiver preparado para o receber nas bancadas ou em casa. Hoje, por exemplo, pouco depois do começo da segunda parte, um passe de contra-ataque para o Nuno Gomes pelo meio de três defesas do Boavista (com um deles a contorcer o seu corpo num ângulo impossível para tentar chegar à bola, que passava ali tão perto, e ela a parecer ter volição para fugir do alcance dele) foi uma dessas dádivas.

Já em relação ao segundo, dizer que o Rui Costa perde muitos passes não é mais do que reconhecer o risco que ele abraça para criar algo que pode nunca mais ser visto. Numa palavra, é um encómio. Como os grandes artistas fazem, aliás, pelo menos aqueles que arriscam reputação, família e fome para criarem o novo, mesmo que tal vá contra o gosto reinante e o mercado. O Makelele não falha um passe desde 1991 e saiu do Real Madrid por se achar injustiçado no meio de grandes jogadores (e do Figo), mas só o mais fervoroso discípulo do Luís Freitas Lobo se lembrará de alguma coisa de único que ele tenha feito num dos seus passes laterais daqui por 30 anos.

Em todas as actividades, é débil o argumento de quem tenta encontrar falha no génio. Desde sempre que o raciocínio é o mesmo, e o Obrigadosápinto consegue aperceber-se da sua origem. Por tudo isso, saúda o improviso do Rui Costa, a coragem do empreendedor. Não se trata aqui, atenção, do obtuso improviso, o em-cima-do-joelho, tão louvado em Portugal, mas sim a resposta inovadora e criativa que o indivíduo dá, quando se vê perante uma situação com a qual nunca se deparou. Essa resposta envolve uma solução inesperada e muitas vezes impensável ou incompreensível para o vulgo. É o génio do génio.

Apesar de tudo, o Obrigadosápinto não deixa de lamentar a sua própria insistência temática no Rui Costa, mas garante que não irá nascer de novo como Obrigadoruicosta, o que seria uma transgressão ética grave. Tão-pouco irá transformar os seus textos em púlpito para enaltecer a superioridade deste culto sobre as outras religiões monoteístas, mas não só o Rui Costa está a forçá-lo a falar da sua pessoa repetidas vezes, como também, e se este for mesmo o seu último ano de jogador, o Obrigadosápinto tem de aproveitar cada oportunidade para inflacionar a sua arte, antes que os que hoje o criticam o façam postumamente na época que vem.



* Quem o faz são provavelmente os mesmos que julgam que o Rui Costa remata bem por ter marcado um golo à Austrália em 1991 no qual a bola deixou o seu pé direito a 30 extasiantes metros da baliza. Porém, se assim fosse, e o Obrigadosápinto não se cansa de o lembrar a quem o quiser ouvir, o Rui Costa estaria agora a ser celebrado como o maior número 10 da sua geração em todo o mundo, com o Zidane reduzido à condição de mera foca amestrada. O Obrigadosápinto sabe, porém, que uma média de cinco golos por época jamais o poderia permitir. Em compensação, ao menos o Rui Costa é visto como o maior número dez de várias gerações pelo Obrigadosápinto, o que é, em si, uma coroa de glória.

(SLB, 6 – Boavista, 1)

11.11.07

O campeonato mais violento do mundo


"Na Argélia, além de ter sido capitão de equipa e um modelo para os colegas, [o Binya] viu apenas dois cartões amarelos durante toda a época passada.”

Eurico Gomes, O Jogo, 11.11.07

7.11.07

À la recherche

Pela primeira vez em muito tempo, o Obrigadosápinto não foi capaz de escrever a seguir ao jogo. Também dormiu mal. Quando se joga melhor futebol, de facto custa perder. O Obrigadosápinto não discute, atenção, se o SLB merecia ou não perder, mas sente, esta época como na época passada, que perder com uma equipa da qualidade do Celtic, mesmo na Escócia, é razão para tormento. O Obrigadosápinto espera, ainda, que os jogadores do SLB se sintam atormentados e que reajam em breve de forma obrigadosápíntica (menos que isso é inadmissível), pois não se pode desaproveitar uma ocasião como esta de provar que se é melhor do que alguém em alguma coisa e não amaldiçoar amargamente os deuses, a pátria, os ricos e a condição humana pela oportunidade perdida.

Em dias assim, o Obrigadosápinto não se consegue libertar de pensamentos relacionados com o carácter implacável da experiência humana, intimamente ligado à passagem do tempo. Afinal, quando se deixa passar a altura indicada para fazer algo, o único vazão possível é o remorso, causado pela natureza ininterrupta do continuum temporal. Quantas potenciais namoradas não terá o Obrigadosápinto perdido graças à sua incapacidade de agir no momento justo? As intenções do Obrigadosápinto eram quase sempre nobres, pois relacionavam-se com frequência com a busca da palavra justa para dizer à miúda em causa, mas isso não impedia que ela acabasse a festa com outro e que o Obrigadosápinto chegasse a casa de madrugada para mais uma sessão de binge. Esta última parte, o Obrigadosápinto recorda-a com saudade como tempo bem empregue (mas ainda hoje, como então, encontra dificuldades em conciliar a reflexão com a acção).

O Dasein do Celtic-SLB incluiu, claro, tanto uma dimensão espacial (da), como uma temporal (sein). O sein, o Obrigadosápinto sentiu-o, no jogo de Glasgow, como angústia proustiana, a cada oportunidade de golo que o SLB perdia; de cada vez que o Cardozo aparecia em grande plano no ecrã da televisão com o rosto torturado do homem que não consegue acordar do sonho recorrente no qual está nu do meio da multidão; a cada corrida que acabaria por precipitar o aparecimento dos 35 anos do Rui Costa. Depois do golo do Celtic um nada antes do intervalo, o Obrigadosápinto não duvida de que os jogadores do SLB tenham experimentado a segunda parte da mesma forma, num estado de impotência causado tanto pela ânsia de quererem parar o relógio, como pela vontade doentia de reviverem os momentos em que podiam ter marcado golo antes. Alguns terão tentado, até, regatear com o divino.

Quanto ao da, porém, o Obrigadosápinto confessa-se perplexo e forçado a concluir pela existência factual de genii loci, pois esta é a única maneira de explicar que o Celtic não perca em casa, para a Liga dos Campeões, desde Setembro de 2004. Essa inexpugnabilidade do Celtic Park não se pode dever: aos generosos e duros (o Obrigadosápinto inveja, sobretudo, a consistência óssea do Scott Brown), mas muito limitados, jogadores do Celtic; em exclusivo aos alcoolizados e entusiastas adeptos do Celtic e às suas (francamente já) entediantes entonações do “You’ll never walk alone”; ou à total inépcia dos adversários, já que não só não há nenhuma equipa no mundo composta por 11 Luíses Filipes, como, nestes três anos, equipas como o Milan, o Manchester ou o Barcelona não ganharam em Glasgow.

O Obrigadosápinto reconhece o perigo de poder estar a cair numa hipérbole ossiânica, mas é de facto o espírito do Celtic Park que protege a equipa da casa, como um Francis Begbie arquitectonicamente recriado. O Obrigadosápinto penitencia-se ainda por abandonar o pensamento racional que se tornou um predicado seu depois dos excessos da juventude, mas esta é a única explicação possível para ninguém conseguir ganhar ao McGeady, ao Caldwell, ao McManus e ao Naylor, quando eles lá jogam.

O Obrigadosápinto recorda-se, por fim, que começou esta recensão do jogo com o Celtic falando de questões temporais, e a analogia recusa-se a desaparecer, lateja na prisão do corpo. É que o jogo de ontem também lembrou, ao Obrigadosápinto, um tema predilecto da ficção científica: ao ver o jogo, o Obrigadosápinto sentiu-se, em boa verdade, como se tivesse viajado no tempo e estivesse a ver o ataque de uma equipa portuguesa na década de 1970 ou 80. Como o ataque do SLB é composto, quase na totalidade, por jogadores estrangeiros, o Obrigadosápinto volta a concluir pela existência factual de genii loci, aqui a uma maior escala geográfica. Afinal, não há nature nem nurture que expliquem este estado de coisas inalterado.

(Celtic, 1 – SLB, 0)

4.11.07

"É, sem dúvida, o tendão de aquiles do Nuno Assis"

Um dos momentos mais entusiasmantes da época desportiva para o Obrigadosápinto é sempre a possibilidade de ver um jogo nocturno em Paços de Ferreira. O enquadramento da filmagem, a cor do relvado, a névoa que parece flutuar sobre o estádio e filtrar a luz artificial das torres, o próprio espaço do terreno de jogo, tudo isto lembra, ao Obrigadosápinto, uma transmissão de um jogo europeu feita na antiga URSS. A própria maneira de vestir do José Mota e a sua calvície putiniana pouco fazem para remover, da cabeça do Obrigadosápinto, a ideia de que este treinador não destoaria como figurante em “O Mistério de Gorky Park”.

Claro que esta fantasia fica algo desmaiada sempre que o José Mota dá a sua entrevista rápida à Sport TV, enquanto ajeita o boné de beisebol do patrocinador do Paços, e relembra ao Obrigadosápinto quem ganhou a Guerra Fria, mas são sem dúvida bons momentos de nostalgia televisiva para o Obrigadosápinto.

Enfeitiçado pelo pormenor, como se sabe, o Obrigadosápinto não está preocupado em discutir questões relacionadas com o jogo de hoje, a justiça do placard ou se o Bruno Paixão ultrapassou de vez as suas folionas e inócuas tendências misógino-varonis. É em virtude do seu interesse pelo aspecto marginal, por tudo o que é excêntrico, que o Obrigadosápinto está mais interessado em divagar sobre o que viu acontecer aos 19 minutos da primeira parte, quando o Rui Costa descobriu mais um trilho escondido debaixo da relva e meteu a bola à frente do Nuno Assis, isolado no flanco esquerdo e a correr a caminho da área do Paços. Em breve alcançado pelos defesas, o Tom Hulce do plantel do SLB já não tinha hipóteses de rematar, por isso fintou para o meio, como faz sempre, e passou a bola ao Léo, que se desmarcava atrás de si em direcção à baliza, já dentro da área.

O Léo (ai, ganda Léo, tu…) rematou, o Peçanha defendeu, foi canto. Tudo normal. O mais admirável neste lance, contudo, foi que o passe do Nuno Assis para o Léo, que podia ter sido feito com a parte de dentro do pé (o mais normal em termos dos movimentos que o pé executa durante um jogo de futebol) direito, excepcionalmente até com o peito do pé esquerdo, já que o Nuno Assis estava virado para o meio, foi feito com o calcanhar.

Dois pontos prévios:

1.º O facto de o passe ter saído do calcanhar não impediu que tivesse sido muito bem feito, com a qualidade e inércia necessárias para ficar mesmo a jeito do remate do Léo;

2.º Ao contrário da maioria dos adeptos do SLB que conhece, o Obrigadosápinto considera que o Nuno Assis tem qualidade para ser jogador do SLB. Apesar de o Obrigadosápinto ser pouco confiável no que toca a percentagens ou a qualquer actividade que envolva um pouco-que-seja de cálculo, ele julga, partindo do facto de que 80% da época do SLB consiste em jogos contra a Académica, o Belenenses, a Naval, etc., que um jogador que veio para o SLB como o melhor jogador do Guimarães pode jogar de forma útil e por vezes vistosa contra equipas desse nível e ser melhor do que 95% dos jogadores que as compõem. O Obrigadosápinto crê, pois, que o Nuno Assis pode ser da segunda linha do SLB, mas que nunca destoará. (Se, em vez de o usarem para tapar quaisquer buracos que surjam, o metessem a jogar na posição dele, atrás do[s] avançado[s], nos 30, 40 m² circundantes à zona do campo onde o seu futebol muito curto e nervoso, sem dúvida uma consequência das suas sucintas pernas, pode fazer a diferença, as coisas ainda seriam melhores, mas só a infinita sabedoria do Trapattoni o percebeu.)

O que fascina o Obrigadosápinto é, de facto, o fascínio que o seu calcanhar exerce sobre o próprio Nuno Assis, que o usa para quase tudo, até quando isso se revela pouco natural, como uma pessoa que agarrasse um lápis para escrever e pegasse nele com os nós dos dedos, ou outra que rodasse uma maçaneta de porta pegando-lhe entre o polegar e o mindinho. O Obrigadosápinto já viu o Nuno Assis fazer passes com esta parte da sua anatomia, quando tinha a opção de fazer um passe mais simples e lógico, em inúmeros jogos do SLB, mas este ano ainda não os tinha visto surgir de forma tão evidente, algo que até já atribuíra à melancolia causada pela venda do passe do Simão que o Nuno Assis sentiu cair sobre si este Verão.

É pública a amizade entre os casais Assis e Sabrosa, tal como era notória a tendência de 80% dos passes do Nuno Assis (dos quais 90% feitos de calcanhar) serem para o Simão. Para o Nuno Assis, a tabelinha perfeita era sempre com o Simão. O Obrigadosápinto não se atreve a especular sobre quais as causas da dependência do Nuno Assis do seu osso calcâneo (apesar de julgar que uma leitura psicoterápica da infância dele a situaria algures nos seus primeiros treinos nos iniciados), mas pressente que, nos seus momentos mais íntimos, o Nuno Assis sonha consigo a fazer passes de calcanhar de 40 metros para o Simão. No mundo real, o que o Obrigadosápinto mais deseja ao Nuno Assis é que ele um dia consiga respirar a disodia rarefeita onde reina, absoluto, o calcanhar do Zlatan.

Por reconhecer essas qualidades em si, o Obrigadosápinto saúda, pois, a pertinácia e a paixão do Nuno Assis por um gesto que já é tanto dele como do Madjer, mesmo que tantas vezes pareça, a toda a gente, ser contranatura. O próprio Obrigadosápinto não as percebe, porém, ao contrário do senso comum, não se agarra a constructos de normalidade reaccionários e aprecia a determinação estóica do homem que defende uma ideia contra todos os moinhos de vento. O Obrigadosápinto aceita a complexidade da vida e não equivale, de forma maniqueísta, o normal ao que é bom e o anormal ao que é mau, porque natural, afinal, era a posição das mãos do Abel Xavier no Euro 2000. O que era desnatural era a sua cabeleira, mas não foi por causa dela que ele foi punido.

(Paços de Ferreira, 1 – SLB, 2)

3.11.07

Ce l'hanno tutti con me perchè sono piccolo

Hoje, dia do jogo com o Paços de Ferreira, o Obrigadosápinto leu ao acaso, via “Record”, esta declaração (de profundo teor antiobrigadosápíntico) do Quim ao jornal “O Benfica”. É dirigida aos adeptos do SLB: “Será que acham que é assobiando quando algo sai mal que estão a ajudar a equipa e o Benfica? É precisamente quando as coisas não nos saem bem que têm de nos apoiar...” Ah, Quim, meão Quim, arquétipo do tipo que chega a chefe de secção sem nenhuma qualidade discernível, só porque nunca pôs um problema ao patrão e tem um ar simpático (e que destrói a vontade de trabalhar e de viver de toda a equipa que de si depende), arquimtipo do fiscal de obras de câmara municipal que usa o seu pequeno poder para se aproveitar dos que da função dele dependem, achas que é com esta pequena chantagenzinha emocional, exemplo pobre, até para ti, de psicologia invertida, que pões pressão sobre um adepto do SLB como o Obrigadosápinto? Assobiar quando não se gosta é um direito do espectador de futebol; a ti, o Obrigadosápinto assobiava-te (de máscula forma não galanteadora) se te visse passar na rua. Sabes porquê? Por isto: na lista de guarda-redes que foram de facto titulares indiscutíveis do SLB nos últimos 20 anos, como tu és agora, Quim, constam os nomes de, entre outros, Bento, Preud’homme e Enke. Agora apareces tu. O Obrigadosápinto conhece o Silvino, Quim, e tu nem sequer és o Silvino. Nem o raio do Neno.


1.11.07

Zorofilia

Afectado por demorada avaria nos serviços da TV Cabo, mal e parcamente o Obrigadosápinto viu apenas um pouco da segunda parte do Setúbal-SLB, a tempo, contudo, de testemunhar os dois golos do Setúbal. Durante a primeira parte, ouviu rádio de forma continuada pela primeira vez em muitos anos, enquanto se recordava de todas as vezes em que, ao ver futebol na televisão, o ecrã ficava sem imagem e uma mensagem aparecia de imediato a informar que o canal que transmitia o jogo lamentava esse facto, ao mesmo tempo que assegurava que era “naturalmente alheio” ao mesmo.

O Obrigadosápinto ponderou, durante mais de uma hora, intervalo incluído, quem seria o culpado de cada vez que isto acontecia, visto que jamais ouviu um canal que fosse admitir ter culpa de uma falha na transmissão, mas foi acordado do seu torpor meditativo pelo futebol inteligente e obrigadosápinto jogado pelo Setúbal. A equipa que mais quis fazê-lo ganhou, mas o Obrigadosápinto, apesar de seguro da sua masculinidade, não deixou de ficar incomodado com a vulgaridade oral do treinador do Setúbal, que se revelou o Michel Houellebecq do futebol português.

Outra coisa que incomodou o Obrigadosápinto foi a atitude do Camacho em relação a toda esta Taça da Liga. Tudo bem que possa ser uma competição menor, tudo bem que possa atrapalhar a “periodização táctica” idealizada pelo Pepe Carcelén, mas o SLB tem obrigação de, sempre que joga, no mínimo honrar o jogo. Em qualquer modalidade. Não é preciso ganhar, ou agradar aos adeptos, mas o SLB tem sempre de honrar o jogo. É uma obrigação histórica. O Camacho, que a televisão mostra sempre arrebatado no banco, mexeu-se menos em Setúbal do que se estivesse em pleno zazen. Mais: toda a sua atitude pública (entrevistas, conferências de imprensa, etc.) em relação à Taça da Liga só pode ter acabado por verter para os jogadores, e a verdade é que o Camacho tratou esta prova como um furúnculo.

Porém, em vez de tratar do furúnculo com o cuidado e a higiene que se recomendam em cirurgias deste género, decidiu que o iria remover num dermatologista com curso tirado na Regent University ou no consultório onde a Rita Vaz está a estagiar. O resultado incluiu, obviamente, a expressão “complicações com pus”, que resume de forma mundificada a participação do SLB na Taça da Liga.

O Camacho, que nunca se cansa de falar do clube de que é adepto, certamente não trataria o Real Madrid da forma como tratou o SLB na Taça da Liga. E já devia saber que o SLB é mais do que ganhar e perder jogos; também é atitude, conduta e respeito. Ao longo dos três jogos que o SLB teve na Taça da Liga, a coisa que mais se viu (e que o Adu perdoe o Obrigadosápinto) foi o enfado do treinador do SLB no banco. O Obrigadosápinto quase que apostaria que as axilas do Camacho nem no desempate por penalties com o Estrela se orvalharam, o que nele é sinal da mais absoluta indiferença.

Alguma afeição pelo Camacho morreu, assim, no íntimo do Obrigadosápinto (ou pelo menos deslocou-se para uma secção do sistema digestivo), e agora terá de ser o treinador do SLB a trazê-la de volta à luz. Mesmo que o Camacho estivesse a fazer política e a enviar mensagens para fora do balneário, como se diz no jornalismo desportivo, isso não o desculpa. E o Obrigadosápinto sabe que a lei do karma acabará por apanhar o Camacho, pelo que teme pelo SLB.

O Obrigadosápinto queria ainda saudar, porém, o central do SLB que se tornou no verdadeiro herói existencialista da campanha da equipa na Taça da Liga. Em tempos, o Obrigadosápinto chegou a pensar que o Zoro e o Binya poderiam, por jogarem os dois pelo centro, funcionar como um autêntico Eixo da Dor para os adversários do SLB. A consequência seria que qualquer atacante que conseguisse chegar perto do guarda-redes do SLB já estaria de tal modo zupado que lhe faltariam forças para chutar à baliza (e, mesmo que conseguisse chegar perto, o som ofegante da respiração do Zoro e/ou do Binya nas suas costas seria o suficiente para o desassossegar com a mera possibilidade de dor).

Em Setúbal, porém, o Zoro confirmou algo de que o Obrigadosápinto já suspeitava: é um falso Obrigadosápinto. Sempre foi observável, mas só agora se vê, que o Zoro tem um coração de galinha num corpo de pterodáctilo, que personifica o puto que, aproveitando da melhor forma o seu tamanho, aterroriza todos os outros miúdos na escola, até ao dia em que é exposto (talvez não pelo Obrigadosápinto, que era amiúde uma criança previdente) como uma fraude, como um falso duro, como um bruto mole. Nesse dia, a imagem construída em que ele já acreditava dá lugar a um profundo vazio existencial, o desespero de ter de ser em vez de parecer.

Quando se deixou cair de joelhos depois do seu próprio amortecimento para o primeiro golo do Setúbal, o Zoro, no desespero das suas próprias limitações, ocupou, ao humanar-se, um espaço que ficara livre no íntimo do Obrigadosápinto.

(Setúbal, 2 – SLB, 1)