18.10.08

Ele do que a gente precisava era de um Pinto da Costa

O OSP tem uma maneira de distinguir os jornalistas desportivos que têm verdadeira cultura geral daqueles que, sem a ajuda da internet, não passariam de funcionários de junta de freguesia secretamente simpatizantes do PNR: fá-lo quantificando o uso que eles dão à palavra “interregno”, quando surgem os períodos em que o campeonato pára para os jogos da selecção. Os jornalistas sofríveis preferem usar “pausa” ou “interrupção” para se referirem a estes dolorosos momentos sans SLB, no que é a solução simples, maquinal, imponderada, a escapatória de quem não cogita (sobretudo no mal que o raio da selecção faz a um campeonato que, com franqueza, parece que ainda nem começou). Já os jornalistas que são artesãos da palavra optam sempre por “interregno”, escolhem tactear a raiz, cogitar na significação etimológica de interregnum, pois alcançaram que neste momento não há uma única razão válida para ver jogos da selecção. Porque perceberam que existe hoje um vazio régio na selecção, é empregando essa palavra que tentam transmitir isso, obrigatoriamente de forma dissimulada, aos leitores mais atentos.

Foi em Julho de 2004 que o OSP, sempre dos primeiros a despertar de sonos dogmáticos, chegou a essa inferência, e desde aí que não consegue ver um jogo da selecção senão com módica atenção. E tudo aconteceu pouco depois de o Rui Costa ter anunciado que ia deixar de jogar por Portugal, o que levou o OSP a cogitar que a qualificação para o Mundial da Alemanha marcaria a primeira vez em 20 anos que teria de ver a selecção jogar sem o Rui Costa ou sem um extremo-esquerdo canhoto fora de série. Para quê ver, então? E, para ser sincero, o OSP não tem, nem nunca teve, grande paciência para o faux patriotismo (hoje, o OSP sente-se como que leclezianamente enamorado da língua francesa) associado: i) aos jogos da selecção; ii) às carrinhas familiares que ostentam autocolantes com o emblema monárquico na porta da mala; iii) aos gajos que atam bandeiras portuguesas aos piscas traseiros das motas, quando chega a altura de ir à concentração de Faro; iv) em geral a tipos que gostam do José Hermano Saraiva.


Há quatro anos, então, que as coisas são assim para o OSP, e, olhando para o conjunto de jogadores que aí vem, parece que assim se manterão, pelo menos até o Sporting deixar o João Moutinho ir jogar para o estrangeiro para ele se tornar no jogador que o OSP sabe que ele pode ser.(1) Aí, talvez valha a pena voltar a ver a selecção. Afinal, não há hoje jogador português mais inteligente e mais limitado no lote de seleccionáveis, logo não há hoje jogador português que com mais inteligência consiga superar as suas próprias limitações. Era admirável, uma verdadeira aula de obrigadosápintismo, ver o Moutinho a jogar futebol, quando ele apareceu – aliás, era admirável vê-lo a pensar, enquanto calhava estar a jogar futebol, em como encontrar maneira de extrapassar os adversários e os obstáculos que aqueles lhe punham no caminho –, mas agora já não é tanto. Em verdade o OSP diz que já lhe pareceu vislumbrar, uma ou duas vezes, um brilho baço de Custódio nos olhos do Moutinho.

Portanto, sem jogos do SLB, e com o OSP algo desacoroçoado por o José Rodrigues dos Santos ter sido mais uma vez injustamente desconsiderado pelo comité de selecção do Nobel da literatura, o que resta? Cogitar sobre o SLB, claro. E não faltam motivos ao OSP para cogitar. Contudo, o OSP não pretende escrever sobre o desassossego que vai na sua glândula pineal com a perspectiva de o Suazo estar quase a voltar a jogar (o que assegurará por si só que o SLB não mais perderá pontos [sim, pontos; nem sequer se está a falar aqui de jogos] este ano contra os Leixões e as Navais deste país); não, desta vez pretende iniciar uma relação metatextual (plena de recato, respeito e consideração, claro está, de acordo com os seus valores de gentil-homem) com um texto sobre o SLB e o OSP que leu recentemente.

Claro que esse texto (cujo conteúdo o OSP chancela a 100%, diga-se de passagem, pois concorda plenamente com as verdades nele reveladas) já tem para aí umas três semanas, porém há bons motivos para o OSP só agora ter decidido divulgar as suas cogitações sobre o que ele expressa. Por um lado, quando cogita, o OSP não se limita a parecer um falso lento – é realmente um cogitador lento (pois só sobre a relva é que acredita na rapidez do génio); por outro, ordenar todas as notas de rodapé foi uma tarefa demorada, mas usá-las era a única maneira de o OSP conseguir controverter questões tão complexas, de versar todas as ligações que os metatextos necessariamente estabelecem.(2) E, por último, as cogitações do OSP levaram-no a ter de olhar para a própria natureza do benfiquismo, um tema que não se pode de modo algum abordar com ligeireza, com insouciance, ou sem cumprir intricadas abluções várias vezes ao dia.


Pois bem, o OSP até acha normal que se seja da opinião que os sportinguistas escrevem melhor sobre futebol (e porventura mesmo tout court, embora para defender esse ponto de vista seja mister descartar, em ambos os casos, a prosa marialva do Eduardo Barroso, algoz do Bilro) do que os benfiquistas: afinal, tal não expressa senão a diferença entre ter estudado no St Julian’s ou na Escola Secundária de Sacavém. O OSP acha ainda natural a acusação que já lhe fizeram de escrever sobre o SLB como se fosse um sportinguista, visto que, por ser nu de complexos, tem noção do muito que une benfiquistas e sportinguistas, nomeadamente o facto de ambos passarem a maior parte do tempo a falar sobre o SLB.(3) Nada de anormal até aqui, portanto.(4)

Já no que o OSP não pode estar de acordo é que caiba somente ao Sporting a natureza trágica com a qual se diz (com a-propósito) que se faz a grande literatura. Na noção de benfiquismo do OSP, pelo menos, nunca assim foi.

“Se tens dor, transforma-a em poesia”, lembra-se o OSP de ler, adolescente, numa antologia de poemas do Goethe. Contrariamente ao que é sua prática corrente (que decorre, aliás, da sua erudição, aliás reconhecida), o OSP não se lembra desta vez do original alemão, mas a tradução portuguesa ficou gravada no seu espírito e serviu-lhe de gérmen e justificação para todos os arremedos poéticos, com fins de estrofe invariavelmente de tema em -a, que constam da juvenília do OSP. Já do que o OSP se lembra é que sempre intuiu, desde criança, que o SLB tinha uma natureza trágica por baixo do seu manto glorioso de clube português com mais títulos. Havia ali uma mágoa inexprimível que o OSP, na realidade, entreviu desde sempre no bigode melancólico e lusitano do Toni.


Uma vez, o OSP tentou mesmo levar o tema “Benfica, clube trágico?” a debate na sala de convívio do antigo Estádio da Luz. Idealizava-o assim como uma mesa-redonda igual às do Franco-Portugais, o que daria de imediato credibilidade ao acto de polemizar, mas os reformados residentes não acharam piada, não levaram o OSP a sério e, inclusive, ameaçaram-no fisicamente. Há certos assuntos de que não se pode falar, e muitos benfiquistas acham realmente que estar no Guinness com 150 mil sócios prova que o SLB é o maior clube do mundo – e que isso interessa (5) – e que o estatuto do clube é intocável, logo não se admitem discussões sobre a sua gloriosidade.

Só que, para o OSP, o SLB tem também um lado trágico, e é fácil perceber porquê se se tiver em mente seis anos diferentes: 1963, 1965, 1968, 1983, 1988 e 1990. Em todos eles o SLB sofreu derrotas em finais europeias, cinco delas na Taça dos Campeões (a verdadeira, antes do advento do apalhaçado hino da “Champions”) e que, a terem sido ganhas, fariam com que o SLB tivesse hoje sete Taças dos Campeões, dignidade que partilharia unicamente com o Real Madrid e o Milan. Só que em 1963, o Germano estava lesionado e não pode jogar a final com o Milan, e o SLB acabou por levar dois golos incríveis pelo meio; em 1965, o Costa Pereira lesionou-se durante o jogo, e o SLB teve de jogar com dez mais de meia hora; em 1968, o Eusébio não marcou o 2-1 no último minuto, quando ia isolado para a baliza e só tinha o guarda-redes à frente, o que nunca, mas NUNCA, acontecia; e, em 1988, cinco dias antes da final com o PSV, o melhor jogador do SLB, o Diamantino, então na sua melhor forma de sempre, fez uma rotura de ligamentos.

Se não há tragédia nestas seis verdadeiras tragédias, então a mágoa no bigode do Toni iludiu o OSP estes anos todos. E, aceitando isto, como se pode achar que no SLB não mora também a dor da derrota que produz a grande literatura? É preciso é ter bravura para admitir que essa dor trágica existe.


E talvez estes últimos 20 anos tenham sido necessários para o SLB redescobrir a natureza trágica do desporto, a natureza de que o SLB também é parte e da qual os benfiquistas se tinham esquecido. Em 1993, por exemplo, o SLB ganhou a final da Taça de Portugal ao Boavista com uma das suas melhores equipas de sempre, à qual não foi dado o tempo para se tornar verdadeiramente imortal.(6) Depois do jogo e da vitória, o OSP lembra-se que a reportagem no balneário mostrou a toda a gente um plantel calmo, sem euforias, demasiado profissional. Os jogadores vestiam-se, arranjavam-se, penteavam-se, quase em silêncio. Habituado a ganhar, o SLB trivializara essa acção, e os seus jogadores já não sentiam necessidade de saltarem em cuecas em frente às câmaras (aqui, talvez essa escolha tenha sido acertada, admite o OSP, ainda e para sempre horripilado pela imagem recorrente do Paulinho Santos, cuecas salpicadas sabe-se lá de quê, a festejar depois das vitórias do Porto), de celebrarem depois de terem feito parte de uma das melhores exibições de sempre de uma equipa numa final da Taça de Portugal. No meio de toda aquela fleuma, um único jogador andava por ali aos saltos, ele sim eufórico, ele sim percebendo que ganhar não é um meio para alcançar um fim. Esse jogador, para sorte actual dos benfiquistas, era o Rui Costa.(7)

Só a nobreza do saber perder permite ter elevação quando se ganha. Olhando para a história recente do futebol português, não é difícil começar-se a cogitar que não se têm visto muitos exemplos desse tipo de atitude. E pode ser que o SLB do OSP seja um clube trágico, mas é também por isso que é um clube poético: é um clube cujos sócios ajudaram activamente a construir o antigo Estádio da Luz; é um clube cuja equipa de futebol cumprimenta os espectadores com uma vénia depois de entrar em campo; é um clube que ao longo dos anos teve capitães como o José Águas, o Coluna, o Simões, o Humberto Coelho, o Veloso e o Ricardo Gomes, que são personificações antes de tudo de espírito desportivo, e só depois do SLB (8); é um clube cujo melhor jogador de sempre apertava a mão aos guarda-redes, quando achava que eles mereciam ser cumprimentados por o terem impedido de marcar um golo; é um clube que não pode ser limitado pela vã glória de ganhar.(9)

(1) Isto em vez do choramingas em que ele se tornou, que passa a vida a mandar-se para o chão, a reclamar com os árbitros, a pedir cartões amarelos para os adversários e, mal aconselhado, a achar que a sua vocação na vida é jogar como número 10. O OSP só sabe que, se as coisas continuarem assim, consegue, com relativa nitidez, visualizar o Moutinho (1,70 m) a ser a estrela do meio-campo do Guimarães daqui por quatro/cinco anos. É por isso fundamental que o Sporting reduza os 25 milhões que pede por ele aí uns dois terços e o deixe ir para o Barcelona aprender com o Xavi (1,70 m) e o Iniesta (1,69 m) nos treinos. É importante, é o futuro do OSP como apoiante da selecção que está em jogo.

(2) Por isso é que o OSP foi obrigado a fazer (por irritante que isso seja, porque o é) um texto à David Foster Wallace – um pasticho, por assim dizer. Mas só no que toca à estrutura, deve ressalvar-se, que o OSP é homem o suficiente para admitir que não percebeu peva do Infinite Jest.

(3) Isto não é imaginoso: veja-se qualquer declaração pública ou entrevista ao Diário Económico do Filipe Soares Franco, presidente, logo macho dominante, do Sporting.

(4) Contudo, é necessário ter presente que dizer que é preciso ser do Sporting para se escrever bem afronta 93,7% dos elementos da redacção de A Bola entre 1960 e 1990, sem dúvida o segundo melhor período literário de sempre de uma publicação portuguesa, logo a seguir aos 13 anos da Presença. Até o grande Ruy Belo confessou que foi a ler A Bola que aprendeu a escrever. E note-se ainda que quem melhor escreve sobre futebol em Portugal na imprensa continua a ser, goste-se ou não dela, a Leonor Pinhão (mesmo dando de barato que o argumento do Corrupção foi, de facto, o Na Outra Margem, Entre as Árvores da sua carreira).

(5) Deste modo, chega-se ao ponto de a validação da grandeza do clube pelo exterior ganhar uma importância maior (e há um clube no Porto que é um exemplo de levar essa vontade de validação ao ponto da monomania) do que a paixão pessoal pelo próprio clube, que, não obstante poder ser consequência de transmissão familiar (e normalmente é-o), não é racionalizável, e muito menos quantificável ou estatisticável.

(6) O tempo flui, cruel; como nas finais da Taça dos Campeões perdidas, aos benfiquistas só resta pensar, até à morte, no que podia ter sido. E transformar a dor em poesia.

(7) O Padinha acha que a indiferença do plantel nessa ocasião se devia a para aí cinco meses de salários em atraso, mas eu, Tó Portela, recordei-lhe que o OSP jogaria no SLB de graça e sem seguro de acidentes pessoais.

(8) E há hoje esperança de que a capitania possa voltar a valer mística, depois de demasiados anos de Joões Pintos e Simãos. Voltou a haver quem desde pequeno sonhe em ser capitão do SLB.

(9) Hã? Que psicotrópicos é que o OSP andou a tomar? Para falar a verdade, Lourenço, esquece tudo isto que o OSP escreveu. O OSP quer é que o SLB ganhe e, para isso, de bom grado mandaria o Brilliant Orange para o caixote do lixo e se passaria a inspirar no Vocês Sabem do que Estou a Falar.

4 comentários:

Ricardo Lima disse...

Permita-me corrigir o OSP quando afirma que "em 1968, o Eusébio não marcou o 2-1 no último minuto, quando ia isolado para a baliza e só tinha o guarda-redes à frente, o que nunca, mas NUNCA, acontecia;". De facto nunca acontecia, nem aconteceu. Quem de facto falhou esse golo feito foi António Simões que anos mais tarde no celebre documentário sobre Eusébio distribuído pela Prisvideo e que ainda hoje guardo em VHS desculpa-se dizendo que estava cansado e que a pressão exercida por Nobby Stiles coibiu de fazer melhor. Obrigado

montra disse...

Creio que não, Ricardo Lima.
Recordo-me de ver o Eusébio penitenciar-se por não ter marcado O golo, atribuindo a culpa à lesão que tinha na perna direita e que o obrigou a rematar com o pé esquerdo, o seu menos brilhante.

O Simões não terá falhado contra o Inter ou contra o AC?

Frederico Roque

Ricardo Lima disse...

Se a memória não me atraiçoa creio que não caro Frederico mas assim que tiver disponibilidade irei verificar no dito documentário. É um facto que Eusébio jogou a final lesionado mas parece-me que terá sido o Simões o jogador em questão. Se estiver a fazer confusão não será com outra final da Liga dos Campeões mas com a meia final do Mundial de 1966.

Padinha disse...

Ricardo, o falhanço de Simões num último minuto foi de facto na meia-final do Mundial de 66.