Carregando o lastro de ser agora, ao mesmo tempo, uno e trino, o Obrigadosápinto, também por causa deste peso extra, só hoje conseguiu escrever sobre o jogo com o Milan. Sendo três pessoas distintas que, afinal, são uma só e uma pessoa que se divide em três, a confusão ontológica que lhe foi criada por esse facto ajudou, também, à morosidade do Obrigadosápinto.
Pegando neste seu novo estatuto, o Obrigadosápinto poderia, inclusive, fundar uma seita, mas o jogo com o Milan fez antes os seus pensamentos encalharem por completo noutro tipo de sacerdócio. Não sendo, naturalmente, um freudiano (até porque aceita o Rui Costa como fazendo parte de estruturas da psique que são partilhadas por toda a humanidade e encontra a figura dele, por exemplo, em diversos mitos e lendas, formadores ou não), o Obrigadosápinto não deixou de ver o jogo do SLB com o Milan pensando na interpretação psicanalítica do Oἰδίπoυς τύραννoς.
O Obrigadosápinto, a quem incomodam as manifestações forçadas de fair play, confessa que não gosta de ver as equipas entrarem juntas em campo. Sendo uma pessoa pacífica, embora com garra, de alguma forma sente falta do elemento tribal do futebol do passado, quando as equipas entravam em campo sozinhas e se ouvia o tipo de assobiadela que hoje desapareceu dos estádios. É compreensível, uma vez que, naquele momento em que se subiam as escadas ou se saía do túnel, as atenções de toda a gente estavam viradas para um único objecto, ou a equipa da casa ou a equipa de fora, e não havia cá ambiguidades. (Os árbitros, esses, esses sempre sofreram.)
Com o Milan, não foi tanto que o SLB tivesse entrado em campo lado a lado com o adversário – foi mais tê-lo feito de mão dada, como um filho que passeia com o pai. E é aqui que se vai basear o regresso do Obrigadosápinto a geniais, mas entediantes, metáforas.
Nos primeiros 15 minutos do jogo, aquilo a que se assistiu foi, na verdade, à completa infantilização do SLB, que, como um filho demasiado respeitoso, foi incapaz de dizer ao pai que quer viver a vida (jogar o jogo) nos seus próprios termos. Imagens de incontinência SLBiana causada por temor ao pai entravam e saíam da mente do Obrigadosápinto.
O desenrolar do jogo até ao golo do Pirlo foi espinhoso para o Obrigadosápinto, que via o SLB assumir-se de forma voluntária como uma equipa da II Divisão, talvez mesmo da II B, europeia, tal era a quantidade de éter que parecia separá-la da do Milan. Voltando ao mote, era como quando uma criança joga à bola com o pai e lhe tenta tirar a bola, e ele nunca deixa, fazendo a criança – que, por sê-lo, só tem olhos para a bola – correr atrás dela em círculos fracassados. (O que o pai não sabe, claro, é que a raiva e a frustração, que tantas vezes acabam em lágrimas e ranho, sentidas pelo filho se acumulam, se misturam com o medo e dão origem a uma vontade de poder, ao desejo de suplantar o pai – de lhe tirar aquela bola. O pai é, afinal, um obstáculo à concretização do desejo do filho.)
A naturalidade com que surgiu o 0-1 foi uma ofensa a tudo o que o Obrigadosápinto representa, já que o Milan estava a tratar o SLB como uma equipa de juvenis trata uma de infantis. Um momento, porém, serviu para mudar o jogo todo, o momento em que o SLB matou o pai. Metaforicamente, claro.
Claro que todos os jornais o identificaram como sendo o do golo do Maxi Pereira, mas faltou-lhes subtileza analítica; o momento em que o SLB ultrapassou o medo da castração pelo Milan foi um choque do Gattuso com o Petit em que quem ficou no chão foi o Gattuso. Na colisão, tão arrepiante como o nanosegundo de silêncio que se segue a uma travagem brusca de um carro, mesmo antes do impacto, quem teve de cerrar os dentes para se pôr de pé não foi o filho, mas sim o pai.
O Petit e o Gattuso são, claro, dois duros do futebol moderno (a ênfase, aqui, deve ser colocada em “moderno”, pois aqueles que acusam o Petit de ser açougueiro não se lembram do André, do Rui Filipe, do Paulinho Santos ou, no SLB, do Nunes), mas o facto de o primeiro ter sido mais duro que o segundo empolgou toda a equipa do SLB, fê-la concretizar a aspiração de infância de mandar o pai ao tapete e ver que este não era mais do que um velho (no caso do Milan, então, não há aqui qualquer metáfora).
Em termos simbólicos, pois, o pai estava morto, e o SLB libertou-se e fez uma exibição que não chegou para ganhar, é verdade, mas que foi empolgante. O Obrigadosápinto só pede, agora, que o SLB não se assuste com a enormidade do acto por si cometido e não reprima o que levou à sua geração, passando, como tantas vezes acontece, a identificar-se com a figura do pai. A emancipação conseguida frente a uma equipa como o Milan pode dar frutos muito doces para quem, como o Obrigadosápinto, às vezes se cansa de jogar bem e não ganhar.
Voltando ao mote, o Obrigadosápinto espera ainda que o SLB consiga continuar na UEFA, pois teme que a equipa entre em prolongado estado de depressão se tiver de voltar a fazer torneios no Dubai e a passar solitárias noites de semana em casa, em frente à televisão. A actividade física liberta endorfinas, úteis no combate a depressão, o que talvez seja melhor que o divã.
(SLB, 1 – Milan, 1)
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