10.12.07

O terno retorno

Durante muito anos, pelo menos parte do Obrigadosápinto perdia tempo, volta e meia, a defender o Nuno Gomes, um dos maiores jogadores amor-ódio que se lembra de ver passar pelo SLB. Maria Alice, Maria Amélia e muitos outros nomes reveladores da imaginação do homem português já foram chamados ao Nuno Gomes, mas há muito quem o considere um símbolo do SLB moderno. O que, de facto, terá o seu quê de responsabilidade no estado do SLB moderno.

Em 2005, parte do Obrigadosápinto viu a final da Taça na bancada central (consequência do conhecido sangue azul do Obrigadosápinto), tendo assistido, por isso, à subida de uma equipa para receber as medalhas (o SLB, que fez, nesse dia, uma exibição patética, igual a tantas outras desse ano em que ganhou o campeonato) e de outra para levantar a taça (o Setúbal de Rachão, camisa aberta a revelar o fio de ouro com crucifixo pendente que decerto lhe foi oferecido pelo padrinho, a pior equipa que o Obrigadosápinto já viu ganhar a Taça, que, inclusive, levaria cinco ou seis do Estrela de 1990).

Quando a equipa do SLB descia para o relvado, o Nuno Gomes envolveu-se numa discussão com um espectador, ficando furioso e tendo mesmo de ser levado para longe dali pelos companheiros de equipa. A parte do Obrigadosápinto que foi ao Jamor estava longe demais para perceber o que se passou, mas consegue especular, mesmo assim, sobre qual a bottom line que levou ao desaguisado: o espectador que (sem dúvida) ofendeu o Nuno Gomes fê-lo questionando a sua masculinidade (de certeza).

E é este, no fundo, o problema do Nuno Gomes: é demasiado bonito para alguma vez ser consensual ou sequer aceite pela maioria dos benfiquistas. A pele dele é demasiado esfoliada, e os traços do seu rosto, que até podem ser descritos como ligeiramente femininos, são tudo aquilo de que o benfiquista médio se lembra, quando chega a hora de atribuir culpas depois de uma derrota ou empate.

Este axioma está metaforicamente contido no facto de o Nuno Gomes ser, juntamente com a Sandra Cóias, “embaixador” do perfume Unum, a fragrância do SLB. Parte do Obrigadosápinto não usa perfume, mas consegue adivinhar que o Unum terá um odor moderno, leve, fresco – e é por coisas deste género que o Nuno Gomes também não se ajuda a si próprio: usasse ele Old Spice depois de fazer a barba ou espalhasse um Brut, talvez até um Jovan Musk Oil, no peito e nos punhos, os benfiquistas perdoar-lhe-iam tudo mais facilmente.

“O futebol não é para meninas”, gritavam, no báratro asfaltado do recreio ou no terrulento de um pelado, a parte do Obrigadosápinto (enquanto esta se contorcia com dores após sofrer uma entrada com o pé à altura do pente), e é precisamente a feminilidade aparente do Nuno Gomes que é o problema, não o facto de ele jogar melhor com outro ponta-de-lança, mais à frente ou mais atrás, com flanqueadores ou sem flanqueadores, de ter ou não saudades do Brian Deane. Que benfiquista – talvez sem o prazer com que o fazem sportinguistas e portistas – não fez já, afinal, uma imitação do Nuno Gomes a pôr o cabelo atrás das orelhas?

Um homem de 1,81 metros e 76 quilos que foge do contacto, um avançado que pensa como um médio de ataque, que tabela melhor do que chuta, que usa a cabeça sobretudo para pensar futebol e não para cabecear – como é que o benfiquista médio o poderia aceitar como um dos seus avançados míticos? Ao Obrigadosápinto, apetece-lhe invocar, por momentos, o espírito futebolístico do Nené, que sofria da mesma falta de agressão masculina e, sendo muito melhor do que o Nuno Gomes, o mesmo abuso por parte dos adeptos.

O futebol não é para meninas, relembra parte do Obrigadosápinto com alguma tristeza, não só esperando que o SLB um dia abrace o futebol feminino, mas também que os benfiquistas evoluam o suficiente para perceberem que a ulterioridade dos motivos que os levam a falar mal do Nuno Gomes diz mais sobre eles do que sobre o Nuno Gomes. A afirmação da masculinidade é, bem vistas as coisas, tão importante para o adepto médio do futebol como o não-tão-ocasional comentário racista, e a maledicência e o boato em Portugal, vejam-se os casos do Mourinho, do Calado ou do Sócrates, são sempre feitos pondo em causa a assumida orientação sexual do visado.

No SLB, a competência ou o mérito acabam por ser relativos, com algumas excepções, se o jogador não é um exemplo de virilidade a jogar, não faz carrinhos capazes de fracturarem os ossos de vários jogadores da equipa contrária em simultâneo e não corre atrás de bolas que, 20 metros à sua frente, estão a um metro de saírem de campo pela linha lateral. (Isto não é de somenos: o Petit, por exemplo, tem crédito ilimitado à conta disto, mesmo se, quando chegou ao SLB, desequilibrava constantemente a equipa com correrias sem sentido.) Se, além de não fazer isto, tiver uma carinha laroca, soam as trombetas.

Na Luz, então, é como uma doença – o que mais uma vez se provou esta época: o Cardozo, apesar de alto, é macio como algodão doce, e não o avançado grande, bruto e desdentado por que sempre anseiam os adeptos do SLB, esperançados em verem no relvado o tal avançado que ganha todas as bolas de cabeça, que obriga todas as equipas a terem de jogar com três centrais só para o pararem (o que nunca acontece), que se limita a sacudir o pó dos ombros após cada entrada assassina, que, se encontra o Pedro Emanuel perto de si na marcação de um canto, o faz desandar com a mera frieza metálica do seu olhar.

Que me lembre, aliás, ele nunca existiu no SLB ou em qualquer sítio que não nas divisões inferiores do País de Gales.

Já o adepto que quer um homem-homem para o ataque do SLB povoa Portugal: pode ser visto a cuspir para o chão nas ruas de Gondomar; a chamar nomes no trânsito na rotunda de Algés; a fumar com um bebé ao colo em Santarém; a comover-se, no recato da sua casa em Peso da Régua, com um filme em que o Chuck Norris salva uma criança que perdeu os pais; a voltar bêbado para casa em Valongo; ou a dizer “um homem é um homem, um bicho é um bicho”, em Canas de Senhorim, enquanto vê o José Castelo Branco na televisão de canto no café. Na verdade, o Obrigadosápinto crê que, para muitos homens assim, o Nuno Gomes inspira medo por ser uma sublimação de desejos profundos, uma ameaça de que algo latente saia do armário.

No jogo com a Académica, o Nuno Gomes esteve nos três golos: obstruiu o guarda-redes no primeiro, criou o espaço para a jogada do Léo no segundo (mercê de uma tabela, arte na qual é o melhor avançado português dos últimos 25 anos) e fez um cruzamento para o terceiro que o Luís Filipe apenas consegue ver em fantasias que terminam com a correcção do seu estrabismo por um oftalmologista renomado.

Como tantas vezes, claro, o Nuno Gomes não marcou, demonstrando sempre mais vontade de passar a bola do que de falhar mais um golo (como, de forma indigna, fez logo no primeiro minuto do jogo com o Porto). E é por isso que ele nunca chegará lá, é por isso que tudo o que ele faça nunca será o suficiente, é por isso que nunca será o tal. Será como sempre foi: médio, às vezes médio-alto, não o símbolo que dele os dirigentes querem fazer, mas longe de ser a razão de todos os males do SLB.

Apesar de apreciar as suas qualidades de futebolista – e menos as suas de avançado –, esta parte do Obrigadosápinto tem de admitir que já não defende o Nuno Gomes como dantes. O facto indesmentível, afinal, é que ele joga futebol de forma cada vez mais amaricada e cada época foge mais da mera possibilidade de encontro físico com um qualquer rude central adversário. Esta parte do Obrigadosápinto atribui a culpa ao seu segundo casamento: agora matrimoniado com uma advogada de boas famílias que decerto lhe contra-indica que meta o pé, o Nuno Gomes terá decerto perdido a bravura que nascia do temor do que lhe aconteceria se não marcasse um golo para dedicar, beijando a aliança, à Isméria. Esta parte do Obrigadosápinto compreende esse temor.

(SLB, 3 – Académica, 1)

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