12.1.09

A vez do Iznogoud *

Os pecados do OSP são, na sua maioria, confessáveis. Um desses confessáveis pecados é a inveja que sentiu do Sporting por este ter o Vítor Damas. Sim, o melhor guarda-redes era nosso, mas o Manuel Galrinho Bento, do excelente guarda-redes que indubitavelmente era, só tinha mesmo o génio. Quanto à condição de elegância que o OSP já, e principalmente na sua tenra idade, considerava essencial para o mui digno exercício de defesa das balizas, zero. Bento era um cruzamento de cantor pimba com gajo de Alfama. Uma adamada permanente, com um viçoso bigode. E nos braços, para piorar a já feiosa cena, a manga curta, algo que, nos keepers, a FIFA, em vez de impor a camisola por dentro dos calções – à velho –, deveria punir severamente.
O Damas, embora não tão bom como o Bento**, que defendia as redes a golpes de pau e tiros de morteiro, usava florete, limpando o perigo com a elegância de um nobre Mosqueteiro, com o cabelo – curto – alinhado e composto com um longo calção preto. Um verdadeiro guarda-redes na óptica obrigadosápíntica, tal como os russos Aranha Negra e Dassaev, o italiano Zoff ou o nosso Costa Pereira.


A inveja desapareceu, mas a tristeza não, e até se agudizou. A substituição de Bento manteve a deselegância, mas retirou-lhe o brilho e somou-lhe o ridículo mal-educado. O OSP não quer falar mais do personagem do que é necessário, mas Silvino Louro, além de sofrer golos de qualquer tipo que conseguisse levantar uma bola por cima de uma barreira, lançou a técnica de se mandar sempre para o chão independentemente da altura a que a bola se preparava para entrar na baliza. Foi assim que sofreu um golo de Jaime Magalhães na Luz, golo esse que o próprio do Louro, com a cara contorcida por dores derivadas das varizes, classificou de “um ganda golo”. E a esta vocação de fiscal de baliza somava o tal ridículo mal-educado, que se consubstanciava em vestir, regularmente, um uniforme integralmente de cor verde.

Inibimo-nos de qualificar mais este indivíduo, que foi, entretanto, arrumado num canto escuro da história, e avançamos no tempo até chegar a mais um génio da grande área, este até melhor que Manuel Bento: Michel Preud'Homme.

Se Eusébio nos empurrou para a Europa, Preud'Homme segurou-nos na primeira divisão. A tal melhor defesa de sempre que atribuem a Banks, a parar um cabeceamento de Pélé, era replicada semanalmente por Preud'Homme, embora a parar remates de avançados sem pedigree.
Mas, Michel, dit nous: porquê aquele cabelo? Porquê? Estar a uma simples tesoura da perfeição e preferir fingir que se toca guitarra com o Freddie Mercury é atitude que ainda hoje deixa perplexo o OSP.

Depois dessa breve era, a baliza do SLB voltou a ser profana. Mas, entre promessas (Enke) e pesadelos (Bossio), renasceu a esperança. Surgiu Moreira.

O OSP tem a característica de estimar como ninguém os filhos do SLB, os miúdos criados no clube e que assomam à primeira equipa. Não os defende com unhas e dentes, porque a coragem física não é o seu forte, mas não há comentário depreciativo que não seja contra-atacado com uma vigorosa retórica.
Bruno Caires era gordo e não cortava uma bola? Sim, mas fazia passes a 60 metros (na verdade fez só um, contra o Sporting, na Luz, salvo erro). Kenedy não sabia driblar? Sim, mas era um poço de força. Paulo Madeira foi o pior central que já alinhou com a camisola encarnada? Provavelmente não, até porque o Jorge Soares também a envergou, mas, assumindo que sim, lembrem-se que ele usava aquele cabelo, passe o eufemismo, devido a uma promessa que envolvia a sua mãezinha, e tudo o que tem a ver com mãezinhas deve merecer o nosso máximo respeito. E assim sucessivamente, com Rui Pedro, Padinha, Edgar, Diogo Luís, Hugo Leal, até aos mais recentes João Pereira e Manuel Fernandes, a merecerem todos o cobertor de compreensão da retórica cá da casa.
E Moreira também. Mas este, com o seu cabelo à homenzinho, com a sua postura hirta, com os calções e as mangas compridas, parecia revestir-se, acima de tudo, de sonho: um bom e elegante guarda-redes.
E assim foi durante uns bons tempos, em que olhámos para a baliza sem irritação, mas também sem a admiração do extraordinário. Apenas com um sorriso pueril nos lábios, de quem tem ali um sobrinho a defender a nossa cor.

Até que Moreira foi vítima de uma das maiores injustiças – e não só desportivas – da história contemporânea. Após um jogo catastrófico, em que Moreira foi claramente o melhor jogador, o velho Trap escolhe-o – por ser um alvo fácil – como símbolo da mudança. E regredimos cerca de 15 anos, voltando a ter um sósia do Silvino Louro, com aquele ar desgraçado (que os jornalistas apelidam de “humilde”, essa característica tão sinónima de mediocridade) de quem está constantemente a pensar “ai, ai, que lá vou eu levar outro golo” e que se apoderou da nossa primeira camisola.
Moreira ficou-se ora pelo banco de suplentes, ora pelo banco do hospital, num suplício partilhado por muitos e, principalmente, pelo OSP.
Esta época prometia mais do mesmo, apesar da vistosa pré-época deste nosso sobrinho. Mas, graças a Queiroz, o Louro II não conseguiu disfarçar por mais tempo a sua insofismável tendência “frangófona”.

E Moreira, finalmente, retomou o seu trono, num assomo de justiça para o próprio e de intensa alegria e descanso para o OSP.

Entretanto, frangou contra o Trofense. É verdade, mas com inegável elegância.

Valéry escreveu que "Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado subtil de se deixar distinguir." E escreveu-o, imaginem, mesmo sem nunca ter visto o Moreira.

* Não pretendemos comparar Moreira a Iznogoud. Moreira não engana: é com certeza moço sério, casadoiro, extremoso pai e marido, incapaz de pensar mal de um companheiro de equipa, quanto mais de fazer o que quer que seja de incorrecto para subir na vida. O Iznogoud somos nós, todos nós, aqueles que, com Moretto na relva a ser assistido, umas épocas atrás, gritámos pelo Moreira, numa raivosa e violenta demonstração de querermos, sem olharmos a meios, outro “Califa”.

** A comparação qualificativa que apresentamos refere-se à década de 80. Não teríamos pejo em assumir que o Damas dos setentas poderia ser melhor do que o Bento que vimos, mas o OSP não era graúdo o suficiente para assistir a jogos nessa altura. Infelizmente. Infelizmente, porque também teríamos a alegria suprema de ter visto Eusébio, naquilo que constitui, praticamente, o que o OSP tem de reaccionário.

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