Não sem alguma tristeza e experimentando ele próprio a pungência da ingratidão, o Obrigadosápinto ouve alguns benfiquistas dizerem, volta e meia, que o Rui Costa “desaparece” dos jogos do SLB durante muito tempo. Felizmente, não são muitos, e o Obrigadosápinto, condescendente, reconhece ser assim mesmo a natureza e a memória do povo. Tal como o Salazar ganhou os Grandes Portugueses, ainda o Mourinho acabará por ganhar a eleição dos Grandes Modelos do Desportivismo Português em 2047, deixando o Sá Pinto e o Jorge Costa a alguma distância.
O interessante para o Obrigadosápinto, porém, é o que move as pessoas a fazerem essa crítica, que anda quase sempre à roda de dois pontos: por um lado, dizem que a acção em campo do Rui Costa é demasiado descontinuada, por outro que muitos dos seus passes se perdem nos pés dos adversários (ou para longe dos dos companheiros de equipa), o que emperra o jogo do SLB, já de si demasiado dependente dele.
Em relação ao primeiro, é muitas vezes atribuído à idade do Rui Costa, o que é uma completa sandice.* O Rui Costa é um corpo celeste muito brilhante, mas intermitente, desde que o Obrigadosápinto começou a vê-lo jogar nos seniores do SLB, vindo do Fafe. Desde o primeiro momento que o Obrigadosápinto percebeu que, ao vê-lo, estava perante uma experiência de intensidade, não de duração. E ainda bem, pensou na altura, como pensa agora, o Obrigadosápinto. Também devido ao seu posicionamento moral, aliás, o Obrigadosápinto não está interessado em questões de perpetuidade, até porque não consegue imaginar nada de mais entediante do que um estado inalterável: jamais o conseguirão interessar numa queda e enevoada eternidade a ouvir o trinar de uma harpa, nunca o verão com o doce sorriso que advém de um beatífico nirvana, e a repetitiva conversa com cada uma de 72 virgens fá-lo-ia suspirar pelo mundanismo com cheiro a conhaque e Gitanes de uma mulher de reputação duvidosa.
O absurdo de pedir ao Rui Costa que faça mais é o mesmo de chegar ao pé do Leonardo Da Vinci e dizer-lhe: “De facto, és um grande pintor, mas acho que pintas pouco. Tens o quê... 30 quadros?” A experiência intensa de ver um passe singular do Rui Costa, o que acontece duas, com sorte três vezes por jogo, tem um efeito que dura não só esse jogo todo, mas que permanece enquanto a memória tiver alcance. No seu carácter não duplicável estão guardadas a transitoriedade e a violência da epifania ou do satori, infinitamente mais elevados do que qualquer estado permanente.
Quando o desassossego humano dá lugar a uma estranha acalmia, esse instante instintivo de claridade é, sobretudo, consolo, um vislumbre de algo mais, mas, pela sua própria natureza breve, não nega a condição humana do sujeito. E o Rui Costa dá-lo a quem estiver preparado para o receber nas bancadas ou em casa. Hoje, por exemplo, pouco depois do começo da segunda parte, um passe de contra-ataque para o Nuno Gomes pelo meio de três defesas do Boavista (com um deles a contorcer o seu corpo num ângulo impossível para tentar chegar à bola, que passava ali tão perto, e ela a parecer ter volição para fugir do alcance dele) foi uma dessas dádivas.
Já em relação ao segundo, dizer que o Rui Costa perde muitos passes não é mais do que reconhecer o risco que ele abraça para criar algo que pode nunca mais ser visto. Numa palavra, é um encómio. Como os grandes artistas fazem, aliás, pelo menos aqueles que arriscam reputação, família e fome para criarem o novo, mesmo que tal vá contra o gosto reinante e o mercado. O Makelele não falha um passe desde 1991 e saiu do Real Madrid por se achar injustiçado no meio de grandes jogadores (e do Figo), mas só o mais fervoroso discípulo do Luís Freitas Lobo se lembrará de alguma coisa de único que ele tenha feito num dos seus passes laterais daqui por 30 anos.
Em todas as actividades, é débil o argumento de quem tenta encontrar falha no génio. Desde sempre que o raciocínio é o mesmo, e o Obrigadosápinto consegue aperceber-se da sua origem. Por tudo isso, saúda o improviso do Rui Costa, a coragem do empreendedor. Não se trata aqui, atenção, do obtuso improviso, o em-cima-do-joelho, tão louvado em Portugal, mas sim a resposta inovadora e criativa que o indivíduo dá, quando se vê perante uma situação com a qual nunca se deparou. Essa resposta envolve uma solução inesperada e muitas vezes impensável ou incompreensível para o vulgo. É o génio do génio.
Apesar de tudo, o Obrigadosápinto não deixa de lamentar a sua própria insistência temática no Rui Costa, mas garante que não irá nascer de novo como Obrigadoruicosta, o que seria uma transgressão ética grave. Tão-pouco irá transformar os seus textos em púlpito para enaltecer a superioridade deste culto sobre as outras religiões monoteístas, mas não só o Rui Costa está a forçá-lo a falar da sua pessoa repetidas vezes, como também, e se este for mesmo o seu último ano de jogador, o Obrigadosápinto tem de aproveitar cada oportunidade para inflacionar a sua arte, antes que os que hoje o criticam o façam postumamente na época que vem.
* Quem o faz são provavelmente os mesmos que julgam que o Rui Costa remata bem por ter marcado um golo à Austrália em 1991 no qual a bola deixou o seu pé direito a 30 extasiantes metros da baliza. Porém, se assim fosse, e o Obrigadosápinto não se cansa de o lembrar a quem o quiser ouvir, o Rui Costa estaria agora a ser celebrado como o maior número 10 da sua geração em todo o mundo, com o Zidane reduzido à condição de mera foca amestrada. O Obrigadosápinto sabe, porém, que uma média de cinco golos por época jamais o poderia permitir. Em compensação, ao menos o Rui Costa é visto como o maior número dez de várias gerações pelo Obrigadosápinto, o que é, em si, uma coroa de glória.
(SLB, 6 – Boavista, 1)
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