4.11.07

"É, sem dúvida, o tendão de aquiles do Nuno Assis"

Um dos momentos mais entusiasmantes da época desportiva para o Obrigadosápinto é sempre a possibilidade de ver um jogo nocturno em Paços de Ferreira. O enquadramento da filmagem, a cor do relvado, a névoa que parece flutuar sobre o estádio e filtrar a luz artificial das torres, o próprio espaço do terreno de jogo, tudo isto lembra, ao Obrigadosápinto, uma transmissão de um jogo europeu feita na antiga URSS. A própria maneira de vestir do José Mota e a sua calvície putiniana pouco fazem para remover, da cabeça do Obrigadosápinto, a ideia de que este treinador não destoaria como figurante em “O Mistério de Gorky Park”.

Claro que esta fantasia fica algo desmaiada sempre que o José Mota dá a sua entrevista rápida à Sport TV, enquanto ajeita o boné de beisebol do patrocinador do Paços, e relembra ao Obrigadosápinto quem ganhou a Guerra Fria, mas são sem dúvida bons momentos de nostalgia televisiva para o Obrigadosápinto.

Enfeitiçado pelo pormenor, como se sabe, o Obrigadosápinto não está preocupado em discutir questões relacionadas com o jogo de hoje, a justiça do placard ou se o Bruno Paixão ultrapassou de vez as suas folionas e inócuas tendências misógino-varonis. É em virtude do seu interesse pelo aspecto marginal, por tudo o que é excêntrico, que o Obrigadosápinto está mais interessado em divagar sobre o que viu acontecer aos 19 minutos da primeira parte, quando o Rui Costa descobriu mais um trilho escondido debaixo da relva e meteu a bola à frente do Nuno Assis, isolado no flanco esquerdo e a correr a caminho da área do Paços. Em breve alcançado pelos defesas, o Tom Hulce do plantel do SLB já não tinha hipóteses de rematar, por isso fintou para o meio, como faz sempre, e passou a bola ao Léo, que se desmarcava atrás de si em direcção à baliza, já dentro da área.

O Léo (ai, ganda Léo, tu…) rematou, o Peçanha defendeu, foi canto. Tudo normal. O mais admirável neste lance, contudo, foi que o passe do Nuno Assis para o Léo, que podia ter sido feito com a parte de dentro do pé (o mais normal em termos dos movimentos que o pé executa durante um jogo de futebol) direito, excepcionalmente até com o peito do pé esquerdo, já que o Nuno Assis estava virado para o meio, foi feito com o calcanhar.

Dois pontos prévios:

1.º O facto de o passe ter saído do calcanhar não impediu que tivesse sido muito bem feito, com a qualidade e inércia necessárias para ficar mesmo a jeito do remate do Léo;

2.º Ao contrário da maioria dos adeptos do SLB que conhece, o Obrigadosápinto considera que o Nuno Assis tem qualidade para ser jogador do SLB. Apesar de o Obrigadosápinto ser pouco confiável no que toca a percentagens ou a qualquer actividade que envolva um pouco-que-seja de cálculo, ele julga, partindo do facto de que 80% da época do SLB consiste em jogos contra a Académica, o Belenenses, a Naval, etc., que um jogador que veio para o SLB como o melhor jogador do Guimarães pode jogar de forma útil e por vezes vistosa contra equipas desse nível e ser melhor do que 95% dos jogadores que as compõem. O Obrigadosápinto crê, pois, que o Nuno Assis pode ser da segunda linha do SLB, mas que nunca destoará. (Se, em vez de o usarem para tapar quaisquer buracos que surjam, o metessem a jogar na posição dele, atrás do[s] avançado[s], nos 30, 40 m² circundantes à zona do campo onde o seu futebol muito curto e nervoso, sem dúvida uma consequência das suas sucintas pernas, pode fazer a diferença, as coisas ainda seriam melhores, mas só a infinita sabedoria do Trapattoni o percebeu.)

O que fascina o Obrigadosápinto é, de facto, o fascínio que o seu calcanhar exerce sobre o próprio Nuno Assis, que o usa para quase tudo, até quando isso se revela pouco natural, como uma pessoa que agarrasse um lápis para escrever e pegasse nele com os nós dos dedos, ou outra que rodasse uma maçaneta de porta pegando-lhe entre o polegar e o mindinho. O Obrigadosápinto já viu o Nuno Assis fazer passes com esta parte da sua anatomia, quando tinha a opção de fazer um passe mais simples e lógico, em inúmeros jogos do SLB, mas este ano ainda não os tinha visto surgir de forma tão evidente, algo que até já atribuíra à melancolia causada pela venda do passe do Simão que o Nuno Assis sentiu cair sobre si este Verão.

É pública a amizade entre os casais Assis e Sabrosa, tal como era notória a tendência de 80% dos passes do Nuno Assis (dos quais 90% feitos de calcanhar) serem para o Simão. Para o Nuno Assis, a tabelinha perfeita era sempre com o Simão. O Obrigadosápinto não se atreve a especular sobre quais as causas da dependência do Nuno Assis do seu osso calcâneo (apesar de julgar que uma leitura psicoterápica da infância dele a situaria algures nos seus primeiros treinos nos iniciados), mas pressente que, nos seus momentos mais íntimos, o Nuno Assis sonha consigo a fazer passes de calcanhar de 40 metros para o Simão. No mundo real, o que o Obrigadosápinto mais deseja ao Nuno Assis é que ele um dia consiga respirar a disodia rarefeita onde reina, absoluto, o calcanhar do Zlatan.

Por reconhecer essas qualidades em si, o Obrigadosápinto saúda, pois, a pertinácia e a paixão do Nuno Assis por um gesto que já é tanto dele como do Madjer, mesmo que tantas vezes pareça, a toda a gente, ser contranatura. O próprio Obrigadosápinto não as percebe, porém, ao contrário do senso comum, não se agarra a constructos de normalidade reaccionários e aprecia a determinação estóica do homem que defende uma ideia contra todos os moinhos de vento. O Obrigadosápinto aceita a complexidade da vida e não equivale, de forma maniqueísta, o normal ao que é bom e o anormal ao que é mau, porque natural, afinal, era a posição das mãos do Abel Xavier no Euro 2000. O que era desnatural era a sua cabeleira, mas não foi por causa dela que ele foi punido.

(Paços de Ferreira, 1 – SLB, 2)

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