Os mais atentos dos três ferrenhos visitantes frequentes do OSP terão já percebido qual a lógica por detrás da produção plumitiva do blogue. Ela consiste, sobretudo, em divagar todas as semanas sobre os jogos do SLB, visto que, com a excepção do Padinha, perene e sonhador campeão do defeso, o que interessa ao OSP é o que se passa dentro de campo, sobre a relva. O cheiro a relva é muito importante para o OSP, se bem que não seja tão importante como o cheiro a linimento no balneário.
Ora, nesse compromisso relativo ao relato de jogos do SLB estabelecido entre os membros do OSP, fui eu, Tó Portela, o responsável por quebrar a cadeia narrativa. A cisão ocorreu no último jogo em casa com o Belenenses; era eu que devia ter escrito sobre ele, e não o fiz, mas tenho uma boa desculpa: foi devido a várias ordens de razões. Agora o tempo de escrever sobre o SLB-Belenenses de 26.04.2008 já passou, como é natural, tanto porque a relevância não mais existe, como também porque só o mais autocastigador dos benfiquistas se lembrará do que se passou nesse jogo (o SLB ganhou 2-0, com dois grandes golos, um do Luisão e outro do Cardozo, de livre).
Num medonho insight dos seus processos mentais, contudo, o OSP está preparado para revelar quais os dois temas que teria abordado (de forma absolutamente hilariante, como, aliás, é seu timbre) no ensaio sobre o jogo com o Belenenses. O título do post, cheio de afectação literária, seria dickensiano – “Uma história de dois avançados” –, e depois o OSP encarregar-se-ia de:
1) ridicularizar todos aqueles que dizem que o Cardozo é lento notando que não só ele não é mais lento do que o Magnusson, como, quando corre para marcar um livre junto à área adversária, é tão-só o homem mais rápido em campo (este paradoxo, apesar de remeter quer para questões respeitantes à relatividade da velocidade, tão caras à astrofísica actual, quer para o eterno debate futebolístico velocidade de corrida vs. velocidade de execução (ou do gesto técnico), encerra tal hilaridade que é tão espirituoso agora, três meses depois do jogo, como parecia na altura);
2) fazer um paralelo entre a carreira do Stanic e a do Makukula, que andaram a destruir defesas inteiras nos seus anteriores clubes só para chegarem à Luz e verem o seu jogo ofensivo contrair clamídia (como se fosse hoje, o OSP lembra-se de ter passado o jogo com o Belenenses mais atento ao banco do SLB do que propriamente ao campo, à espera de ver se o abatimento do Makukula teria consistência suficiente para se poder ver pela televisão).
Enterrada, pois, a época passada, que, prenhe como esteve de máriowilsonianismo, foi de facto difícil de viver, resta lembrá-la pelo consolo único (em todos os sentidos da palavra) que proporcionou aos benfiquistas: foi aquela em que, pela última vez, se viu em competição o grande Rui Costa. Este texto pretende, assim, evocar um jogador que, pela sua unicidade, imaginação e inteligência futebolísticas, pelo espírito ao mesmo tempo sublevador e reaccionário do seu jogo, pelo triunfo da subjectividade que foram, afinal, os 18 anos da sua carreira profissional, é a própria essência do que o OSP busca sempre, nem que seja de forma fugidia, quando vê um jogo de futebol. É até bem possível que, sem o Rui Costa, não houvesse OSP (isto tendo presente, como é óbvio, que o Rui Costa não simboliza senão o lado apolíneo do OSP).
O OSP confessa, porém, que os tons celebrantes, de festa, que acompanharam as últimas semanas do Rui Costa o transtornaram bastante, pois não sentia qualquer vontade de festejar. É que é bem possível, afinal, que tenhamos visto um jogador como ele pela última vez. Por isso, por um lado ainda bem que a época do SLB foi de tal maneira má, porque a soturnidade que trouxe consigo é a única resposta possível ao abandono do Rui Costa. Profundamente enraizado na tradição católica portuguesa em que foi educado, o OSP, fatalista, só aceita despedidas trágicas, lutos, não admite que se celebre o que se finou, o que não volta mais. Crê, por isso, que a única maneira de celebrar o Rui Costa no último jogo dele teria sido os benfiquistas irem para o estádio vestidos de nojo, para lhe mostrar o quanto ele significou e o quanto a sua partida não tem remédio.
Para celebrá-lo, temos vídeos, o YouTube, recordações, mas no abandono dele nada havia para celebrar.
E é com recordações dele que o OSP vai glosar a época 2007/08, que será sempre, mais do que dez meses de horrível futebol, a última época do Rui Costa. Agora sim, e para evocar o que ficou para trás na carreira dele, o OSP decidiu publicar uma antiga – e autêntica – troca de ideias no Messenger entre Padinha e Tó Portela (os nomes verdadeiros de ambos foram obviamente alterados para protecção da privacidade e por questões de segurança).
A cena passa-se no princípio de Setembro de 2006, e Padinha procura decidir que prenda de aniversário oferecer a Tó Portela. Em breve o tema degenera para abranger postulações sobre números de camisolas, questões de identidade na sociedade moderna, a intensidade da experiência religiosa, permanentes, depilação masculina, a dicotomia Bem-Mal (ou Rui Costa-Figo) e a unicidade da criação artística. Tudo porque o Rui é grande, contém multidões.
(sobe o pano)
Padinha says:
já agora: a tua wish list de camisolas da bola está completamente desactualizada
Tó Portela says:
o quê?
Padinha says:
as referências da Toffs mudaram, e há camisolas que os gajos não têm (Bayern, Flamengo...)
Tó Portela says:
confio no teu bom gosto. não, espera!
Padinha says:
ena, man
Tó Portela says:
afinal não confio
Padinha says:
espanto, horror!
Tó Portela says:
não, não é isso: é que eu só gosto de camisolas com numeração. tenho de ser eu a ver
Padinha says:
não, não. agora vou-te surpreender
Tó Portela says:
não! sem números, não quero. sem número, fico sem identidade
Padinha says:
como é óbvio: uma camisola sem número não faz sentido. vou ver se há do Benfica com o número do Jorge Soares ou do Garrido
Tó Portela says:
o Garrido, man... quem diria que, depois do Tahar, do Bermúdez, do Paredão, o Garrido havia de ser um dos melhores centrais do SLB dos últimos 20 anos...
Padinha says:
o tempora…
Tó Portela says:
das duas, uma: escolhe tu uma com número, mas que tenha relevância histórica (tipo aquela do Ajax que eu comprei há uns meses, que, sendo dos anos 80, tinha obviamente o 9 do Van Basten); ou então vês as que estão na minha lista que ainda existem e escolhe-las com os números que eu indico
Padinha says:
ok
Tó Portela says:
ainda há bastantes, decerto. ah, e prefiro manga curta, ok?
Padinha says:
ok. e estás-me tu a dizer que a camisa do Ajax anos 80 tinha obviamente de ter o 9?
Tó Portela says:
sim
Padinha says:
olha, pardon my french, mas foda-se! achas que sou um jornalista estagiário de O Jogo, ou quê?
Tó Portela says:
pronto, pronto, não te queria ofender. mas, já que falas nisso, a 3 do Danny Blind…
Padinha says:
só pelo cabelo, vale a pena evocá-lo com uma camiseta. mas a permanente do Blind lembra-me mais camisas de alças. não te posso dar uma camisa de alças
Tó Portela says:
olha, se calhar a do Blind é só dos anos 90
Padinha says:
lá está, metes-te nestes assuntos de especialista, e depois metes água... (mas deixa tudo comigo, caro Tó Portela: vais ter camisolas que farão as gajas virar a cabeça)
Tó Portela says:
obrigado. mas meter água o quê?
Padinha says:
Blind... anos 80...
Tó Portela says:
o Blind, salvo erro, começou como defesa-direito na década de 80. era suplente do Silooy. agora obrigaste-me a ter de ir verificar
Padinha says:
estava eu a dizer, e o meu amigo pelos vistos não percebeu, que dizer a um gajo como eu que a camisa 9 do Ajax nos anos 80 era a mais significativa é quase ofensivo. era tipo pedir a camisa 10 da selecção italiana dos anos 80 – não faz sentido: tem de ser ou a 9 (que seria a minha preferência) ou a 16
Tó Portela says:
vejo-me forçado a revelar, após uma exaustiva busca na confiável Wikipedia, que o Blind chegou ao Ajax em 1986. a tua memória… enfim, a idade não perdoa
Padinha says:
ainda me lembro de quando o Espírito Santo jogava no Benfica
Tó Portela says:
a 9 do Ajax era a mais significativa para mim porque o Van Basten é o melhor avançado-centro, o melhor 9, que já vi. o facto de ter o número dele acaba por ser mais importante do que a camisola. há monges que transcendem o hábito.
Padinha says:
o quê?
Tó Portela says:
por exemplo, quando estive em Florença, vi a túnica do S. Francisco de Assis e, mesmo sendo ateu, senti-me um bocadinho zonzo. o significado histórico daquilo tudo, a relevância mística daquela merda… foda-se, foi esmagador. e, como que a provar que não é a camisola em si, mas aquilo que ela conota, descobri mais tarde que parece que a túnica data de umas décadas a seguir à morte do gajo
Padinha says:
portanto, daqui por uns séculos haverá quem se sinta perturbado e à beira do desmaio quando se vir ao pé da roupa outrora suada do Van Basten
Tó Portela says:
é possível. eu sei que é absurdo (se bem que, se eu fosse religioso, seria um obstinado franciscano), mas é esse o poder das relíquias. quando estive em Weimar, também toquei na escrivaninha do Goethe para ver se passava alguma coisa para mim. sem resultados até agora…
Padinha says:
não custa tentar
Tó Portela says:
entretanto, informo-te de que o Blind se chamava “Dirk Franciscus Blind”. começo a achar que devia ter era pedido a camisola do Blind. sem número, mas a dizer “Dirk Franciscus” atrás
Padinha says:
não sei se as gajas…
Tó Portela says:
mas eu sei que também eras um admirador do Van Basten
Padinha says:
o melhor número 9 de sempre! (o Puskas que me perdoe, e que Deus tenha a alma dele em descanso.) e que eu vi com os meus próprios olhos, meu filho
Tó Portela says:
e não era só por o Van Basten ser bom (e como o era), era sobretudo por ter um estilo de jogar que, quase 20 anos depois, eu ainda não vi outro avançado ter. acho que é isso que faz os grandes grandes: para mim, é 95% uma questão de estilo de jogar. nem que isso implique perder e, mesmo assim, ser lembrado, como dizia o Cruyff
Padinha says:
eu sei, eu sei
Tó Portela says:
o Shevchenko, o Van Nistelrooy, o Shearer? bons, sem dúvida, só que houve e haverá outros iguais ou parecidos
Padinha says:
mas estás errado
Tó Portela says:
ora, porquê?
Padinha says:
a grandeza do Van Basten é que tomava sempre a opção mais certa e eficaz: só driblava, quando era mesmo preciso; só rematava "artisticamente", quando não era possível de outra forma
Tó Portela says:
tu e a eficácia… mas, que eu tenha visto, o Van Basten foi o jogador alto que mais confortável estava com a bola quando a tinha. lembras-te dos vídeos do Jordan, no YouTube, de que te falei?
Padinha says:
sim?
Tó Portela says:
o que me impressiona não é o gajo ser de longe o melhor jogador dos últimos 50 e dos próximos 500 anos; era como ele estava a jogar um jogo diferente do resto dos jogadores. aquilo não era propriamente básquete, era outra coisa qualquer; era outro jogo, eram outras regras, outro espaço e outro tempo – outra física
Padinha says:
bonito. continua
Tó Portela says:
o Figo? sim, muito bom, mas, dez anos depois, aparece o Cristiano Ronaldo, parecido com o Figo, mais apurado, é certo, potencialmente bastante mais completo (também porque têm físicos completamente diferentes), mas, repito, semelhante ao Figo aos 18/19 anos, sobretudo naquela maneira como vão para cima dos laterais da outra equipa. o molde é o mesmo
Padinha says:
o Ronaldo também tem consideravelmente mais acne e muito menos pêlos nas pernas
Tó Portela says:
eh pá, não interrompas a minha flow…
Padinha says:
peço perdão
Tó Portela says:
o Rui Costa? sim, muito bom, mas com uma vantagem: é único. quando voltar a aparecer no futebol português (não, mundial!) um jogador que jogue com a cabeça levantada – não levantada antes de passar a bola, atenção, mas levantada quando a pede, quando a recebe, quando anda e quando corre com ela –, é bem possível que eu já seja velhinho e tenha tido um AVC. é quase certo, aliás
Padinha says:
eh pá
Tó Portela says:
e porque é que digo futebol mundial? olha, o Zidane pode ser muito bom (e é-o, pois dominou os últimos 7/8 anos da história dos jogadores que vão ficar como referências históricas, se bem que compará-lo com o Maradona, como tantas vezes se lê, seja mais que sacrílego e devesse implicar despejar um cartuchame nas rótulas do gajo que escrevesse isso), mas joga como um touro a investir, cabeça baixa. não consigo achá-lo elegante, não há estilo naquele jogar, apesar de ele fazer o que quer com a bola. ah, e não me venham falar da finta rodopiante à Zidane; já vi gajos no Distrital a fazerem disso (havia um bem jeitoso no Águias de Camarate). e é por tudo isto que o Van Basten é quem é para mim: por ser único. 20 anos depois, ainda não vi um como ele, aquele estilo de jogar é irrepetível. e vai acontecer o mesmo com o Rui Costa. aquela inteligência… foda-se, o Rui não perdeu nada com a idade; quase que me apetece dizer que ele dá esperança a todos os putos que querem jogar à bola e não são os mais rápidos, os mais fortes, pois mostra que a inteligência permite ir longe. o Rui Costa rebela-se contra a ditadura dos fortes – é uma força para a democracia
Padinha says:
estou quase a chorar, man. aposto que nunca ninguém lhe chamou “força para a democracia”. e lembra-te que ele jogou dez anos em Itália sem ter uma finta (tirando a ratada): o Rui Costa não conseguia driblar a minha avó
Tó Portela says:
sábias palavras. entretanto, lembrei-me de uma discussão que tive com o meu pai no Euro 88, pois ele, velha guarda, achava que o Van Basten era macio, e o Bosman uma melhor solucão
Padinha says:
o Rinus Michels também começou por achar. argh! eu, nessa altura, tive uma discussão similar com o meu: ele defendia que o Jêpêpê era melhor do que o Van Basten. até rangi os dentes de raiva, man
Tó Portela says:
lindo, man, lindo!
Padinha says:
o Jêpêpê, man! aquele caralho só sabia correr
Tó Portela says:
aliás, o Samuel secou o Papin na Luz, se bem me lembro. o Van Basten jamais o permitiria
Padinha says:
temos é de fazer aquele blogue sobre futebol
Tó Portela says:
parece-me boa ideia. e aviso-te desde já que o meu post inaugural vai ser, claro, sobre o Rui Costa. como sabes, eu, homem adulto, à época com 26 anos, já pedi ao Rui Costa para tirar uma fotografia com ele, isto enquanto lhe mostrava a miniatura dele que levava na mão. fiquei mais agitado dessa vez, posso garantir-to, do que quando estive ao pé da túnica do S. Francisco de Assis. a minha adoração pelo Rui Costa vai para lá do estilo de jogo dele: é quase mística. ele é o maior homem vivo desde o Gandhi (e como a naturalidade dele contrasta com o pesetero do Figo, que se comporta, tal como o Cristiano Ronaldo, aliás, como se estivesse sempre num anúncio publicitário. há ali demasiado plástico para mim)*
Padinha says:
é a escola lagarta… o Ronaldo pode ser insuportável, mas também é insuportavelmente bom jogador
Tó Portela says:
não, espera, o que é que eu disse? o Gandhi era um racista do caraças, logo o Rui Costa é o maior homem vivo de sempre. e a Rute será sempre a nossa Primeira Dama
Padinha says:
a nossa Rute... pois eu, da minha parte, farei um paralelo entre o Rui e o Chalana: os génios que não marcam golos
Tó Portela says:
estivemos aqui a fazer poesia futebolística, caro Padinha. quem me dera ter o Valdano no Messenger. olha, vou salvar esta nossa conversa.
Padinha says:
ok
* Note-se que esta troca de ideias decorreu antes da mãe e avó de todas as Schadenfreuden.
1 comentário:
Que bela conversa, caro Tó Portela. E que belo lembrete do post "Os génios que não marcam golos".
Vou tratar dele.
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