25.10.07

Bairro semiproblemático

O Obrigadosápinto é um projecto ideado e reflectido há algum tempo, mas o início da época apanhou-o de férias e, desde então, ele tem vivido com uma sensação de persistente e profundo desânimo, perante o que o SLB tem feito até agora. Depois de um ano do pesadelo santiano de Fernando, mais dinâmico como militante do movimento antiaborto do que alguma vez o foi no banco do SLB (o pescoço espasmódico, por involuntário, não pode contar como actividade psicomotora consciente), a euforia preambular da era Camacho tinha dado lugar, na mente combativa do Obrigadosápinto, a uma letargia sem fim, a um receio de falhar, a uma incapacidade de afirmação.

Nisto, o Obrigadosápinto imitava, no fundo, a atitude em campo da equipa do SLB, que, por sua vez, se assemelhava ao padrão comportamental de um desempregado de média/longa duração. Tal como este sente uma compulsão resignada que o obriga a ver dia após dia o “Você na TV” e o “Tardes da Júlia”, muitas vezes em estado semiembriagado, também o SLB passava pelos seus jogos com uma quietude deprimente e uma inacção pesada e invencível, sobretudo nas primeiras partes.

Hoje, porém, ao escrever este texto, o Obrigadosápinto fá-lo com o coração cheio de arrebatado fervor clubista, bem ao seu estilo, portanto. Afinal, foi este o dia de uma segunda parte (a primeira foi como que um desânimo pós-masturbatório de 45 minutos) frente ao Celtic que lembrou, ao Obrigadosápinto, presente no estádio após longa abstinência, a garra das noites europeias da sua infância/primeira adolescência, nos anos 1980/90. Na segunda parte, o SLB assegurou, de facto, o pleno emprego. (A verve do Obrigadosápinto faz com que ele não tenha sequer medo de esgotar metáforas e de as usar até uma dolorosa exaustão.)

Foi como se o Camacho tivesse redescoberto, ao intervalo, os “huevos” que o tornaram, há quatro anos, tão querido do Obrigadosápinto e de todos os adeptos do SLB; como se tivesse abandonado a agudeza táctica (que não é ele) que todos os treinadores julgam ter de demonstrar quando jogam no ambiente mais sofisticado que é uma competição europeia (oh, se haveria aqui material suficiente para uma análise marxista... e para outra freudiana) e decidido ir para cima deles, como se a voz do Ângelo lhe segredasse ao ouvido: “Vamos para cima deles!”; como se tivesse, em suma, decidido aceitar o seu Obrigadosápinto interior.

Aquela segunda parte foi entusiasmante, a lembrar cavalgadas dos ’80/’90, quando ninguém ganhava na Luz em jogos da UEFA; quando a tribo do Terceiro Anel empurrava aquela equipa para a frente; quando o Veloso era ultrapassado vezes sem conta por um extremo jugoslavo/russo/checoslovaco qualquer, mas agarrava-o sempre, pela camisa, pelos calções, pelas meias, até se voltar a colocar à frente dele, na defesa da baliza do SLB; quando se empatavam jogos com o Arsenal mesmo no último minuto, porque o estádio a isso obrigava.

Hoje, foi assim, apesar de o golo não ter sido no último minuto (e de o Obrigadosápinto ter lugar na equipa do Celtic). Seja como for, o SLB investiu pela segunda parte como o Rodríguez, de cabeça baixa como um touro. Devia ser assim mais vezes.

Ainda por cima, e apesar da sua garra, o Obrigadosápinto é, à boa maneira de quem lhe deu nome, naturalmente emotivo, e o facto de ter sido o Cardozo a decidir o jogo tocou-o.

Foi, num só acto, o triunfo do desafortunado; a recompensa celeste para quem acredita na transcendência; o pobre a ganhar a lotaria; o direito (porque a vitória foi mera questão de justiça) feito carne na figura de um jogador (o Obrigadosápinto e a estilística, sempre de mão dada). O golo depois de duas bolas na armação da baliza e de um pontapé na relva-ar, o golo contra todos os assobiadores e contra todos os burburinhos que se ouviam quando a bola passava sequer perto dele, mal passada por um colega de equipa, e ele não a agarrava.

Na compaixão por Cardozo, porém, o Obrigadosápinto não esteve sozinho. Num país com o quarto maior santuário católico do mundo e em que a desgraça e a contrariedade nunca andam longe do discurso público, já Cardozo tinha sido aplaudido depois de mandar a bola ao poste. Era a segunda, o público comocionou-se – e o Obrigadosápinto também. As palmas movidas pela pena soam como as outras.

E, de facto, com tanta injustiça no mundo e num país onde um processo em tribunal se pode arrastar por décadas, Cardozo foi réu, advogado, júri, juiz e executor em 90 minutos: quem vê justiça instantânea, não pode senão comover-se. E o passe do Di María, flutuando como uma pluma que só quis cair no sítio exacto, acrescentou-lhe o adjectivo “divina”.

Entretanto, pode substituir-se “desempregado de média/longa duração”, até porque o Obrigadosápinto sente muitas vezes tendências esquerdistas, por “estudante do ensino superior”.

(SLB, 1 - Celtic, 0)

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