Se o jogo com o Celtic tinha acabado de forma a forçar o Obrigadosápinto, ateu confesso, a usar terminologia que quase o fez passar por beato, o com o Marítimo, em vez de contrariar esse pendor e fazer o Obrigadosápinto voltar a ver o futebol de maneira naturalista, teve e-x-a-c-t-a-m-e-n-t-e o mesmo efeito. É que a vitória do SLB não se pode explicar, efectivamente, estando o sujeito sujeito ao domínio das leis naturais. No “National Geographic”, afinal, numa caçada na savana, nunca o antílope coxo consegue fugir à chita, mas, hoje, o antílope coxo não só fugiu, como ganhou o jogo. Como é que se diz no jornalismo desportivo? Ah sim, a vitória caiu do céu.
A responsabilidade maior, claro, cabe ao Obrigadosápinto concentrado em 1,69 m de defesa-esquerdo que se chama Léo (porque ele acredita sempre que, enquanto continuar a correr, a esforçar-se, a chocar contra a parede da fadiga e da lógica, coisas boas lhe vão acontecer), mas não foi isso que chamou a atenção do Obrigadosápinto, sempre atento ao detalhe que escapa às câmaras de televisão, no jogo do ontem. (Na verdade, no instante do golo, lágrimas de alívio correram de tal forma pelo espírito do Obrigadosápinto que a própria recordação do instante lhe parece embaciada.)
Tendo passado por instantes místicos em anos mais jovens (apesar do seu feitio conflituoso, o Obrigadosápinto fez grandes leituras de Mestre Eckhart), o Obrigadosápinto acredita na ligação invisível entre acontecimentos e pessoas, sabe que nada acontece no vácuo. Assim, no jogo com o Celtic, o momento mais belo do jogo tinha sido uma cueca do Rui Costa a um tipo chamado Caldwell na esquerda do ataque, que, previsivelmente, e conhecendo a biografia do Rui Costa, acabou num remate que quase saiu pela linha lateral.
O belo criado jogo após jogo pelo Rui Costa é, de facto, extraordinário, até na sua imperfeição, e é porventura por isso que ele é, hoje em dia, um caso único de devoção por parte dos adeptos de um clube. O Rui Costa é mais consensual entre os adeptos do SLB do que Jesus entre os cristãos, não admite cismas. Quando ele cria algo que não está ao alcance dos demais, algo que até os confunde e apequena, lembra-lhes no instante seguinte que é igual a eles, humano como eles. No fundo, nessa aliança ele assemelha-se a Ele, só que nunca, mas nunca, é abandonado.
No jogo com o Marítimo, o Obrigadosápinto teve a sorte de ver a linha incorpórea que une todos os jogos do SLB, ao mesmo tempo que se apercebeu, pela primeira vez em mais de duas dezenas de anos a ver futebol, de que há quem esteja numa plana mais alta (mesmo que não em termos de posição no estádio), alguém que, desse lugar, vê algo que os outros nunca tinham visto, algo que nem sequer conseguem ver. Sentado na bancada, o Obrigadosápinto sempre acreditou (e por isso se irava e assobiava) que via mais do que se passava em campo do que os jogadores viam. Cada vez que um jogador tinha um companheiro a correr sozinho pela esquerda e passava para o extremo-direito, cada vez que se agarrava à bola quando tinha um companheiro esbracejante isolado na área, o Obrigadosápinto irritava-se, mas percebia que ele, na bancada, tinha uma visão dos 7000 m² do campo que esse jogador não tinha.
Hoje, o Rui Costa ensinou ao Obrigadosápinto o significado da humildade (os paralelismos messiânicos sucedem-se, mas a culpa não é do Obrigadosápinto): por duas vezes fez passes para jogadores isolados, no caso o Léo e o Rodríguez, que o Obrigadosápinto, sentado bem acima no anfiteatro, só viu quando a bola chegou aos pés deles.
O belo criado por Rui Costa é, pois, o fio condutor que une todos os jogos do SLB, e é a sua criação que dá sentido teleológico aos jogos do SLB. Golos, vitórias, são importantes, claro, mas reduzir a experiência de ser tocado pelo sortilégio futebolístico-cinético do Rui Costa a um fim utilitarista está perto da heresia. Ao experimentá-lo, o Obrigadosápinto sente, como suas, as ideias de Walter Pater.
Nunca haverá outro jogador como ele, tal como não haverá outro Bergkamp ou outro Laudrup (e como, daqui por dez anos, se dirá que não haverá outro Hleb), jogadores que não se limitam à banalidade de sair para qualquer lado com a bola jogável, antes se preocupam, isso sim, com a jogabilidade da própria bola. O Obrigadosápinto sempre se perguntou se os companheiros de equipa destes jogadores sentem o privilégio que é fazer exercício com bola junto a eles.
O Léo deve senti-lo, mas não é por ter contribuído de forma pontual para uma vitória do SLB que merecerá, um dia, um ensaio no Obrigadosápinto; quando isso acontecer (e vai), será antes porque o Léo é Obrigadosápinto. O Rui Costa não o é, em nada, mas o Obrigadosápinto está ciente do seu próprio lugar no cosmos.
Para um confesso ateu, é de facto um facto que o Obrigadosápinto força demasiado a ligação ao transcendente, algo que ele imputa à sua formação nas humanidades. Na verdade, porém, o que o Obrigadosápinto mais desejaria era conseguir explicar a circunvolução do 2-0 com a Naval recorrendo à física.
(SLB, 2 – Marítimo, 1)