12.1.08

Os cristãos evangélicos fazem os melhores companheiros de equipa

"Most people go through life dreading they'll have a traumatic experience. Freaks were born with their trauma. They've already passed their test in life. They're aristocrats." Diane Arbus

Para despachar os prolegómenos e explicar a sempre pomposa acção de usar epígrafes, o Obrigadosápinto tem desde já de dizer que o faz porque lhe estão a faltar termos para descrever o vazio que sente e porque já não se acha capaz de aguentar muitos mais traumas relacionados com o SLB. O Obrigadosápinto viu o Toni ser despedido depois de ser campeão; viu a camisola dez do Rui Costa, entretanto vendido à Fiorentina, passar a ser usada pelo Nelo na época imediatamente a seguir; aguentou não um, mas dois interinados do Mário Wilson; sentado na primeira fila no Estádio da Luz, num derby com o Sporting, viu puro terror nos olhos do Rojas sempre que lhe passavam a bola; ficou eufórico por ter sido campeão há três anos depois de uma temporada em que o único jogo do campeonato de que se lembra é o SLB-Marítimo – mas o descambação actual está a ser demais, sobretudo porque surge depois de uma vera recuperação (financeira e de credibilidade) do clube, numa altura em que as coisas pareciam estar a melhorar.

Contudo, o principal efeito do “incidente” ocorrido no jogo com o Setúbal foi o de fazer com que o Obrigadosápinto se sentisse velho. Não por achar, como os idosos e os monárquicos, que antigamente havia mais respeito e valores autênticos, mas sobretudo por o “incidente” o ter feito lembrar-se do Elzo (um trinco monofíntico que o Obrigadosápinto, por ver nele o homem raçudo que ele próprio é, apreciava sobremaneira), que passou pelo SLB no fim da década de 1980 e nunca mais jogou pelo clube depois de, num jogo em que foi substituído – contra uma equipa não grande e estando o SLB a jogar horrivelmente nesse dia, se a memória não atraiçoa o Obrigadosápinto –, ter mandado a camisola do SLB ao chão, já no túnel, depois de ser substituído.

Exagero? Talvez se possa dizer que sim. Extremo? Sem dúvida (até porque o Obrigadosápinto, profano, rejeita a exaltação de símbolos e a glorificação de ídolos, além de, humanista, acreditar na possibilidade de alguém ter um acto impensado, cometer uma falha, ou até um delito, e se poder regenerar), mas uma punição era devida: o Elzo prevaricou em privado, é certo, mas quem quer que tenha decidido vender o seu passe achou que o SLB tinha valores que faziam parte da res publica e que era importante defendê-los. Que valia a pena defendê-los. E o Obrigadosápinto, um libertário envergonhado, acha o mesmo.

O Obrigadosápinto não quer, naturalmente, dar mais importância ao “incidente” do que ele realmente teve/tem, mas não deixou de se sentir um pouco envergonhado pelo que se passou, por o lado público do SLB ter sido desconsiderado de forma tão evidente. O resto, os bastidores que tantos jornais vendem, nunca interessou ao Obrigadosápinto. Se desse demasiada importância ao “incidente”, o Obrigadosápinto sabe que pareceria velho e uncool, no que significaria a sua morte social, mas também não o pode fazer porque, e até atendendo à sua relação com o treinador Artur Jorge Braga Melo Teixeira, tem noção de que as desinteligências fazem parte das relações laborais. Porém, hipócrita (ou bem-criado, de acordo com o código monárquico), prefere que estas sejam resolvidas em privado, com decoro.

Ciclicamente, foi em Setúbal que o Obrigadosápinto, anteriormente desapontado com o Camacho, se reconciliou de alguma forma com o enrubescido treinador do SLB, que, no seguimento do “incidente”, substituiu o Luisão e o Katsouranis, provando uma vez mais que, quanto mais verdadeiro e menos sofisticado for o seu comportamento, melhor é para o SLB. Agiu bem, agiu obrigadosápinticamente.

Quanto ao “incidente” em si, o Obrigadosápinto, apesar de desconfiar de Atletas de Cristo que se sentam ao volante com 1,44 g/l, tem, como todos os benfiquistas, uma dívida de gratidão para com o Luisão que jamais poderá ser paga de forma adequada, mas sabe que ser companheiro de equipa de um jogador como ele é absolutamente insuportável. Há muitos jogadores assim, que reclamam por tudo e por nada com os companheiros de equipa, com e sem razão – o Liedson será o caso mais próximo, temporal e geograficamente, o Schmeichel o mais conhecido –, e o Obrigadosápinto lembra-se, por exemplo, de ver o Moreira, quando começou a jogar na primeira equipa do SLB, quase em lágrimas porque o Luisão estava a gritar com ele antes de um pontapé de canto. E depois o Luisão é daqueles que, quando são eles a fazerem porcaria, ficam com ar de quem foi apanhado a roubar dinheiro da carteira do pai. O Obrigadosápinto já jogou com muitos assim. Já respondeu à letra a muitos assim.

O Schmeichel não era nenhum Preud’homme, mas foi tão importante e carismático para as equipas pelas quais passou que ganhou o direito a obrigar os companheiros de equipa a terem de o aturar; o Liedson, apesar de ser intolerável, há cinco anos que não faz mais nada senão safar o Sporting (e a intolerabilidade dele é, de alguma forma, deleitante, porque permite regularmente ver como o Sporting dobra a espinha e contorce os seus nobres princípios de “clube diferente” para não o antagonizar); já o Messi, se algum dia quiser jogar no SLB, pode espancar, em campo, qualquer companheiro de equipa à sua escolha que não haverá problema, podendo até ser o Obrigadosápinto a fornecer-lhe o objecto contundente que ele mais deseje ou considere mais apropriado para o tipo de sevícia em questão.

No que toca ao Luisão, nesta fase do seu percurso no SLB, não tem legitimidade para reclamar com quem quer que seja. O Obrigadosápinto sempre o apreciou como jogador, mas tem bem noção de que a sua carreira alteou com o Koeman, que não tinha verecúndia nenhuma de pôr o SLB a jogar com quatro centrais e dois trincos (como com o Lille, em Paris) se achasse que isso era necessário para alcançar o seu objectivo, pelo que o centro da defesa ficava bem mais resguardado. A partir daí, o Luisão tem vindo a decair de forma progressiva – e bem pronunciada desde que, em Março passado, se magoou no primeiro jogo da Taça UEFA com o Paris Saint-Germain, uma lesão nunca muito bem explicada e cuja recuperação demorou para aí três vezes mais do que o previsto. E ele nunca mais foi o mesmo.

Também o Katsouranis, a única pessoa no código postal 1501-805 que tem saudades do Fernando Santos, devia, nesta altura, guardar para si a iracúndia que, bem no íntimo, lhe provocam os seus companheiros do SLB; lhe provoca o facto de, no SLB, já não estar o Karagounis para lhe fazer companhia; lhe provoca a indesmentível decadência da civilização helénica depois do século IV a. E.C. Esta época, o Katsouranis está muito, mas mesmo muito abaixo do que mostrou na época passada, e a sua falta de dinâmica e, se calhar, de vontade de andar por Lisboa é evidente.

Deve, pois, ter-se em mente que o “incidente” teve como protagonistas dois jogadores que estão em baixa e que fazem parte de uma equipa em baixa. Ganhar, como se sabe, é o melhor desodorizante, e o Luisão e o Katsouranis estariam a abraçar-se, como se tresandassem a Rexona, se o SLB andasse a ter sucesso em campo. Todos os casos mais conhecidos de tentativas de peleja in vivo entre companheiros, afinal, envolveram jogadores de equipas desorientadas, e o Obrigadosápinto não tem dúvidas de que chegar a este ponto significa que há gangrena no balneário no SLB.

Saber de quem é a culpa dificilmente é o mais importante aqui, mas é indiscutível que há toda uma cultura no SLB que está errada: quando um jogador que chega atrasado das férias, como o Katsouranis, joga, como se nada se tivesse passado, no jogo seguinte (quando ao Léo, um über-profissional cujo pai ia ser operado ao coração, foi dito para voltar de imediato para Portugal), alguma coisa não está bem. E o Obrigadosápinto até aposta que, com o Leixões, o Luisão vai jogar sem questões nenhumas. Há hoje, no SLB, uma certa decadência fin de siècle.

Estudioso atento de fenómenos de realpolitik, o Obrigadosápinto não é ingénuo a ponto de querer que todos os jogadores se dêem bem, almocem juntos, com as respectivas famílias, duas vezes por mês e entoem, em cânone à oitava, o Ser Benfiquista; não, ao Obrigadosápinto basta-lhe que os jogadores joguem de forma decidida e que dêem tudo o que puderem dentro de campo, o que se faz jogando com e para os colegas. No balneário, podem nem se falar, mas à vista de todos, no campo, aí têm de correr uns pelos outros, têm de sofrer pela equipa (e, no fim, pelo clube). Se se recusarem a correr para emendarem a falha do companheiro do lado, se lhe apontarem o dedo em vez de lhe assegurarem que, se ele falhar novamente, ali estarão para tentar corrigir o erro dele, então o espírito do que é uma equipa já está corrompido. Ah, e quem se recusar a fazê-lo podia, não sei, tipo não jogar na jornada seguinte.

O Obrigadosápinto lembra-se de um caso, no Manchester United, há uns anos, de companheiros de equipa que nem se podiam ver, no caso porque um acusou o outro de ser culpado de um golo da equipa adversária. Aconteceu em 1997; em 1999, porém, o Cole e o Sheringham ajudaram a equipa a ganhar tudo o que havia para ganhar. O Luisão e o Katsouranis, em Setúbal, não fizeram mais do que revelar a putrefacção que, sem qualquer dúvida, alastra hoje em dia entre o plantel do SLB. E, no caso deles, o que é o pior, não fizeram mais do que ajudar a um empate em Setúbal.

(Setúbal, 1 – SLB, 1)

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