28.1.08

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Dois prolegómenos, hoje: 1.º qualquer benfiquista que, como o Obrigadosápinto, tenha aprendido a ler com “A Bola” de antanho sabe que, em 1968, o Eusébio marcou um (célebre) golo à Juventus, em Turim, num livre pouco depois da linha de meio-campo, pelo menos a uns 40 metros da baliza, e antes do qual, ao aperceber-se de que ele tomava balanço para ir rematar à baliza, o público se começou a rir; 2.º a televisão está a matar o futebol.

Muitos dizem que o livre contra a Juventus é talvez o melhor golo da carreira do Eusébio, e o Obrigadosápinto tem como verdade absoluta que, se for esse o caso, então trata-se do melhor golo já marcado desde que os chineses começaram a jogar cuju. Se consegue ser melhor que qualquer um dos três que o Eusébio marcou ao Santos em Paris, em 1961, então o segundo golo da Argentina contra a Inglaterra em 1986 passa a nota de rodapé, escrita por um Rui Barros vitaminado e sem ar de bimbo.

O que é curioso é que o Obrigadosápinto nunca viu o golo do Eusébio à Juventus, não sabe de ninguém que tenha visto o golo do Eusébio à Juventus (pelo menos o verdadeiro). O Obrigadosápinto é, há que confessá-lo, algo misantropo, apesar de galhofeiro no balneário, mas decerto alguém de entre as pessoas que ele conhece já devia ter visto o livre. Nisto, porém, o Obrigadosápinto não está sozinho.

Já a televisão mata o futebol, e não é porque tire pessoas dos estádios. O jogo de Guimarães é disso um bom exemplo, com 25 000 nas bancadas e uma atmosfera à futebol inglês da década de 1980, pancada entre os adeptos incluída, como um bónus sangrento. Nem sempre se jogou bem em Guimarães, mas a dedicação e a intensão das equipas foram de tal modo britânicas que, se se jogasse futebol sempre assim em Portugal, mais gente iria vê-lo ao vivo. Menos em Leiria, claro, onde nem uma sessão de bondage da Soraia Chaves ao intervalo com ingressos gratuitos e oferta de um vale de compras do Lidl no valor de 25 euros seria capaz de fazer com que o União de Leiria-Estrela da Amadora tivesse mais de 887 espectadores (dos quais apenas 512 pagantes).

Por falar em bondage, vários estádios do Euro’2004 deviam ser implodidos com os políticos que trouxeram a organização do Euro para Portugal lá dentro algemados às vedações e vestidos como o Gimp… mas o Obrigadosápinto devaneia, e não se quer poluir falando de política. Nem desviar-se do tema.

Já a televisão mata o futebol, então, porque lhe acaba com o folclore, não deixa espaço para a lenda. Só a terrível tendência actual para o voyeurismo explica que, qual S. Tomé, seja preciso que as coisas apareçam num ecrã para terem realidade (o que é tão verdade para o One Night in Paris como para o tsunami no Índico), mas o facto é que, se calhar, o golo do Eusébio não foi a 40 metros da baliza, se calhar foi só a 32, ou a 28, se calhar o guarda-redes da Juventus deu um frango vítima de hormonoterapia, se calhar a barreira estava mal feita, se calhar ninguém se estava a rir. Qualquer uma destas coisas, se não mesmo uma combinação delas, é muito provável; nenhuma delas, porém, interessa. O importante é que o livre do Eusébio sobrepujou a sua mera concretização física numa tarde em Turim, e, porventura à custa do passa-palavra, à custa da lenda, da tradição oral, a distância para a baliza foi aumentando um nanómetro de cada vez que alguém dela falava.

O golo do Cardozo em Guimarães foi um ganda golo, magnificado pelo facto de o Obrigadosápinto sinceramente não acreditar que o SLB pós-Simão conseguisse marcar golos de livre. Tal como Deus, essa hipótese não era até ontem verificável. Em directo, pareceu, ao Obrigadosápinto, um pontapé ao ângulo que quase furava a rede, o maior livre marcado por um jogador do SLB desde aquela tarde em Turim, do qual, se não houvesse repetição, os benfiquistas ainda falariam como um momento mágico daqui por 50 anos. A repetição mostra, contudo, que a bola entrou a meia altura, a cerca de meio metro do poste, que o guarda-redes do Guimarães não teve asinhas para chegar perto dela e que tentou ir lá com as duas mãos.


Atenção, defender aquele remate era quase impossível (talvez só o Preud’homme… sim, sem dúvida o Preud’homme), e foi de facto um ganda golo. Não foi foi tão bom como pareceu em tempo real, em velocidade real. Se a única repetição mostrada fosse aquele aparente frame a frame da década de 1970/80, com um “R” a piscar e a aumentar e a diminuir no canto superior direito da televisão, este golo seria objecto de estudo por parte da demologia; assim, foi só um ganda golo, a ser consumido – e sublimado – em velocidade real.

(Guimarães, 1 - SLB, 3)

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