11.1.09

Savoir-fouler

Tirando os tempos em que seguia religiosamente, semana após semana, o Ponto de Encontro, o OSP nunca aprendeu grande coisa com a SIC. Contudo, durante o Guimarães-SLB de quarta-feira as coisas mudaram, e o OSP enfim aprendeu. Aprendeu muito a ver a SIC. Aprendeu, por exemplo, porque é que o Carvalhal, esse ressabiado antibenfiquista, foi despedido outra vez (o OSP pode avançar que tal se prende com o facto de ele ser um chato e um peneirento do caraças que se julga o Hermes Trimegisto de um jogo que consiste essencialmente em pontapear uma bola) e também que, apesar de as coisas não estarem famosas no SLB neste momento, existe uma solidariedade, um certo companheirismo, entre os jogadores do plantel que é tranquilizadora — os prolongados abraços trocados entre todos os jogadores de campo depois do golo do Carlos Martins foram, mais do que quadros vivos de um homoerotismo suado, um sinal de que ao menos há por ali querença para jogar em prol dos companheiros de equipa. (Depois de manter um blogue sobre futebol durante mais de um ano, o OSP conseguiu finalmente utilizar a locução “em prol de”. Esta falha inadmissível, até agora por todos inobservada, para alívio do OSP, foi finalmente suprida.)


Mas, sobretudo, o OSP aprendeu que está a ficar velho. Há muito tempo, nos anos em que começou a frequentar a Luz, o OSP lembra-se, não só de ficar com as nádegas entorpecidas por causa do frio das graníticas bancadas do antigo estádio — do verdadeiro estádio —, mas também de se sentir fascinado com a sapiência daqueles benfiquistas mais velhos que, no princípio de cada época, eram capazes de definir a qualidade e o futuro imediato no SLB dos reforços da equipa só pela corrida destes. Para esses sábios, dava para ver se um jogador era ou não “jogador pò Benfica” pela sua maneira de correr. Como o OSP ouviu a um deles uma vez, um jogador só era bom, se “soubesse pisar”; se pisasse mal, isto é, de forma pesada, abrutada ou em esforço, bem como de forma demasiado suave, era descartado para sempre pelo Terceiro Anel. Quantas vezes viu o OSP benfiquistas negarem à partida jogadores que desconheciam só por o estilo de corrida deles não lhes agradar...


Errónea ou não, o facto é que esta ideia germinou no espírito do jovem OSP e ganhou consistência à medida que o jovem OSP foi vendo jogadores que, mesmo que algum dia jogassem calçados com umas Doc Martens, iram sempre parecer estar de pantufas: o Sócrates, o Luisinho, o Antognoni, o Chalana, o Van Basten, o Laudrup, o Aldair ou o Redondo, afinal, foram jogadores de pés tão ligeiros que seriam capazes de atravessar um campo minado a driblar por entre cones (num exercício revolucionário possivelmente imaginado pelo Carvalhal) e sair de lá indemnes. Nenhuma mina explodiria ao ser tocada por aquelas quase-etéreas extremidades de membro inferior.


Assim, passados mais de 20 anos sobre ter ouvido falar pela primeira vez da importância do saber-pisar, o OSP teve como momento mais significativo do jogo de Guimarães o da substituição do Aimar. Quando se deu o obrigatório close-up do rosto do Aimar, enquanto ele caminhava/trotava em direcção ao suplente que iria entrar para o seu lugar, o OSP prendeu a respiração. Até agora, no mais das vezes em que o Aimar aparecia em close-up na televisão, ou depois de um sprint ou no momento em que era substituído, a sua fisiognomia contava histórias sobre o que se estava a passar no mais profundo das suas miofibrilas. As dores musculares faziam com que o passo do Aimar fosse o de alguém que tinha as virilhas perpetuamente assadas, e o seu esgar desvendava sempre mal-estar e esforço e desconforto excessivos — no fundo era um ríctus que revelava que o corpo do seu portador estava cheio de caruncho. Para o OSP, ver o Aimar sair de campo era uma experiência quase tão incómoda como uma entrevista em inglês conduzida pelo Mário Augusto.


Até quarta-feira, efectivamente, a palavra que o OSP mais associava ao Aimar era “caruncho”, porém tudo mudou aos 77 minutos. Enquanto o Aimar era substituído, as feições do seu rosto eram perfeitamente normais: cansadas, mas normais. Não havia nelas indícios de dor lancinante ou de simples desconforto. Até quando correu ligeiramente para apressar a substituição, o Aimar não fechou os olhos ou enrugou o nariz ou cerrou os dentes para disfarçar qualquer transtorno físico: saiu calmo, cumprimentou quem o substitui e foi para o banco, onde o OSP presume que se sentou sem sentir grandes dores nos glúteos.


Enquanto esteve em campo, o Aimar de Guimarães continuou, claro, a só jogar em repentes (como o OSP já disse, é essa a natureza do génio, e o OSP aceita-a com um reverencial abaixar de cabeça), contudo pela primeira vez este ano correu como um desportista, não como um sócio do INATEL. Nesses repentes, foi um prazer vê-lo jogar, ver como o instinto dele o leva sempre a correr para o lado certo, a passar sempre para o companheiro de equipa certo, ver como a bola sai sempre culta daqueles pés que pisam como poucos — não há uma tabela (acção em que é um superior intérprete magnussoniano) ou um passe em que ela não vá perfeitamente controlada para o companheiro de equipa, numa maravilhosa economia de inércia.


Sobre o árbitro assistente que marcou mal fora-de-jogo naquela jogada aos 23 minutos em que o Aimar passou, longo, alto e diagonal, para o Di María (que estava para aí dois metros em jogo) com o corpo completamente torcido e a apontar para outro lado, e a bola a fazer um efeito banana semi-impossível num passe feito com o pé sinistro por um jogador destro, poderá não constar nada no relatório do observador da Liga, contudo aquele terá de viver para sempre com o opróbrio de ter destruído um lance em que futebol foi criado, e isso é pior do que qualquer negativa numa avaliação. O OSP estará doravante de olho em ti, Valter Oliveira, e o olhar do OSP é plúmbeo e castigador.


Mesmo que esta época não traga títulos ao SLB, se ao menos devolver o Aimar ao futebol mundial já terá valido a pena, porque às vezes é mesmo preciso pensar primeiro na grande ordem das coisas.


Guimarães, 0 - SLB, 2